sábado, 11 de março de 2017

PÁGINAS ESCLARECEDORAS

Yuval Harari esclarece em seu Homo Deus (2016) o nó górdio da discussão que envolve religião e ciência, fé e razão, teísmo e secularidade:

“Quando saímos da esfera etérea da filosofia e observamos as realidades históricas, descobrimos que os relatos religiosos quase sempre incluem três partes:
1. Conceitos éticos, tais como ‘A vida humana é sagrada’.
2. Declarações factuais, como ‘A vida humana começa no momento da concepção’.
3. Uma combinação de conceitos éticos com declarações factuais, que resulta em orientações práticas, tais como ‘O aborto jamais deve ser permitido, mesmo um único dia após a concepção’.

“A ciência não tem autoridade nem capacidade para refutar ou corroborar os conceitos éticos elaborados pelas religiões. Entretanto, os cientistas têm muito a dizer sobre declarações factuais religiosas. Por exemplo, os biólogos são mais qualificados que os sacerdotes para responder a questões factuais do tipo ‘Os fetos humanos têm sistema nervoso uma semana após a concepção? Eles podem sentir dor?’.

“[...] Na Europa medieval, os papas, os papas desfrutavam de uma autoridade política de longo alcance. Quando um conflito irrompia em algum lugar da Europa, eles invocavam autoridade para decidir a questão. A fim de estabelecer sua reivindicação de autoridade, eles repetidamente lembravam aos europeus a Doação de Constantino. De acordo com esse relato, em 30 de março de 315 o imperador romano Constantino assinou um decreto oficial assegurando ao papa Silvestre I e a seus herdeiros o controle perpétuo da parte ocidental do Império Romano.

“[...] a história da Doação de Constantino baseia-se não apenas em conceitos éticos. Envolve também algumas declarações factuais muito concretas, as quais a ciência é altamente qualificada tanto para confirmar quanto para refutar. Em 1441, Loreno Valla – um sacerdote católico e pioneiro da linguística – publicou um estudo científico demonstrando que a Doação de Constantino era uma falsificação. [...] Hoje todos os historiadores aceitam que a Doação de Constantino foi forjada na corte papal em algum momento do século VIII.
[...]
“Hoje podemos usar um arsenal de métodos científicos para determinar quem compôs a Bíblia e quando. Cientistas vêm fazendo isso há mais de um século, e, se tiver interesse, você poderá ler livros inteiros sobre as descobertas feitas. Para encurtar uma longa história, a maioria dos estudos revisados por cientistas concorda que a Bíblia é uma coleção de numerosos textos diferentes escritos por autores humanos em séculos subsequentes aos eventos que se propõem descrever e que esses textos só foram reunidos num único livro muito depois dos tempos bíblicos. Por exemplo, apesar de o rei Davi ter vivido por volta de 1000 a.C., aceita-se que o livro do Deuteronômio foi composto na corte do rei Josias, de Judá, por volta de 620 a.C., como parte da campanha de propaganda destinada a fortalecer a autoridade de Josias. O Levítico foi compilado ainda mais tarde, não menos de 500 a.C.

“Quanto à ideia de que os judeus da Antiguidade preservaram cuidadosamente o texto bíblico, sema acrescentar ou subtrair coisa alguma, os cientistas ressaltam que o judaísmo bíblico não era, de todo, uma religião baseada numa escritura, e sim um culto típico da Idade da Pedra, semelhante aos de muitos de seus vizinhos no Oriente Médio. Não havia sinagogas, jessibás, rabinos – nem mesmo uma Bíblia. Em vez disso, havia rituais elaborados no tempo, a maioria dos quais envolvia sacrifício de animais a um ciumento deus no céu, para que ele abençoasse seu povo com chuvas na estação e vitórias militares. Sua elite religiosa consistia em famílias sacerdotais que deviam tudo a sua origem familiar e nada de proezas intelectuais. Os sacerdotes, em geral iletrados, ficavam ocupados com as cerimônias no templo e dispunham de pouco tempo para escrever ou estudar quaisquer escrituras.

“Durante o período do Segundo Templo, formou-se gradualmente uma elite religiosa rival. Em parte devido a influências persas e gregas, os estudiosos judeus que escreviam e interpretavam textos eram cada vez mais preeminentes. Esses estudiosos vieram a ser conhecidos como rabis, ou rabinos, e os textos que compilavam foram batizados de ‘a Bíblia’.
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“O forte da aptidão rabínica era a interpretação.
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“[...] nem sempre é fácil separar conceitos éticos de declarações factuais. Religiões apresentam a tendência irritante de transformar declarações factuais em juízos éticos, criando com isso uma grande confusão e obscurecendo o que deveriam ser debates muito simples.  Assim, a declaração factual ‘DEUS ESCREVEU A BÍBLIA’ muito frequentemente sofre uma mutação para se transformar na injunção ética ‘VOCÊ TEM DE ACREDITAR QUE DEUS ESCREVEU A BÍBLIA’.

“Isso levou alguns filósofos, como Sam Harris, a alegar que a ciência sempre pode solucionar dilemas éticos, pois os valores humanos sempre ocultam algumas declarações factuais. Para Harris, todos os humanos compartilham um único valor supremo – minimização do sofrimento e maximização da felicidade – e, portanto, todos os debates éticos são discussões factuais concernentes ao meio mais eficaz de maximizar a felicidade. Fundamentalistas islâmicos querem alcançar o paraíso para poderem ser felizes, os liberais acreditam que incrementar a liberdade humana maximiza a felicidade, e os nacionalistas alemães pensam que seria melhor para todo mundo se se permitisse que Berlim governasse o planeta. Segundo Harris, islâmicos, liberais e nacionalistas não estão em conflito ético; eles estão em desacordo factual sobre o melhor modo de alcançar seu objetivo comum.
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“Costuma-se descrever a história da era moderna como uma luta entre ciência e religião. Na teoria, tanto a ciência como a religião estão interessadas acima de tudo na verdade, porém, como cada uma sustenta uma verdade diferente, estariam fadadas a se chocar”.

Para mim, não há como contrapor razão e fé, se esta se fundamenta num livro cheio de equívocos (que seus defensores acreditam ser escrito por uma divindade).  

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