Yuval Harari esclarece
em seu Homo Deus (2016) o nó górdio da
discussão que envolve religião e ciência, fé e razão, teísmo e secularidade:
“Quando saímos da
esfera etérea da filosofia e observamos as realidades históricas, descobrimos
que os relatos religiosos quase sempre incluem três partes:
1.
Conceitos éticos, tais como ‘A vida humana é sagrada’.
2.
Declarações factuais, como ‘A vida humana começa no momento da concepção’.
3.
Uma combinação de conceitos éticos com declarações factuais, que resulta em
orientações práticas, tais como ‘O aborto jamais deve ser permitido, mesmo um
único dia após a concepção’.
“A ciência não tem
autoridade nem capacidade para refutar ou corroborar os conceitos éticos
elaborados pelas religiões. Entretanto, os cientistas têm muito a dizer sobre
declarações factuais religiosas. Por exemplo, os biólogos são mais qualificados
que os sacerdotes para responder a questões factuais do tipo ‘Os fetos humanos
têm sistema nervoso uma semana após a concepção? Eles podem sentir dor?’.
“[...] Na Europa
medieval, os papas, os papas desfrutavam de uma autoridade política de longo
alcance. Quando um conflito irrompia em algum lugar da Europa, eles invocavam
autoridade para decidir a questão. A fim de estabelecer sua reivindicação de
autoridade, eles repetidamente lembravam aos europeus a Doação de Constantino.
De acordo com esse relato, em 30 de março de 315 o imperador romano Constantino
assinou um decreto oficial assegurando ao papa Silvestre I e a seus herdeiros o
controle perpétuo da parte ocidental do Império Romano.
“[...] a história da
Doação de Constantino baseia-se não apenas em conceitos éticos. Envolve também
algumas declarações factuais muito concretas, as quais a ciência é altamente
qualificada tanto para confirmar quanto para refutar. Em 1441, Loreno Valla –
um sacerdote católico e pioneiro da linguística – publicou um estudo científico
demonstrando que a Doação de Constantino era uma falsificação. [...] Hoje todos
os historiadores aceitam que a Doação de Constantino foi forjada na corte papal
em algum momento do século VIII.
[...]
“Hoje podemos usar um
arsenal de métodos científicos para determinar quem compôs a Bíblia e quando.
Cientistas vêm fazendo isso há mais de um século, e, se tiver interesse, você
poderá ler livros inteiros sobre as descobertas feitas. Para encurtar uma longa
história, a maioria dos estudos revisados por cientistas concorda que a Bíblia
é uma coleção de numerosos textos diferentes escritos por autores humanos em
séculos subsequentes aos eventos que se propõem descrever e que esses textos só
foram reunidos num único livro muito depois dos tempos bíblicos. Por exemplo,
apesar de o rei Davi ter vivido por volta de 1000 a.C., aceita-se que o livro
do Deuteronômio foi composto na corte do rei Josias, de Judá, por volta de 620
a.C., como parte da campanha de propaganda destinada a fortalecer a autoridade
de Josias. O Levítico foi compilado ainda mais tarde, não menos de 500 a.C.
“Quanto à ideia de que
os judeus da Antiguidade preservaram cuidadosamente o texto bíblico, sema
acrescentar ou subtrair coisa alguma, os cientistas ressaltam que o judaísmo
bíblico não era, de todo, uma religião baseada numa escritura, e sim um culto
típico da Idade da Pedra, semelhante aos de muitos de seus vizinhos no Oriente
Médio. Não havia sinagogas, jessibás, rabinos – nem mesmo uma Bíblia. Em vez
disso, havia rituais elaborados no tempo, a maioria dos quais envolvia
sacrifício de animais a um ciumento deus no céu, para que ele abençoasse seu
povo com chuvas na estação e vitórias militares. Sua elite religiosa consistia
em famílias sacerdotais que deviam tudo a sua origem familiar e nada de proezas
intelectuais. Os sacerdotes, em geral iletrados, ficavam ocupados com as
cerimônias no templo e dispunham de pouco tempo para escrever ou estudar
quaisquer escrituras.
“Durante o período do
Segundo Templo, formou-se gradualmente uma elite religiosa rival. Em parte
devido a influências persas e gregas, os estudiosos judeus que escreviam e
interpretavam textos eram cada vez mais preeminentes. Esses estudiosos vieram a
ser conhecidos como rabis, ou rabinos, e os textos que compilavam foram
batizados de ‘a Bíblia’.
[...]
“O forte da aptidão
rabínica era a interpretação.
[...]
“[...] nem sempre é
fácil separar conceitos éticos de declarações factuais. Religiões apresentam a
tendência irritante de transformar declarações factuais em juízos éticos,
criando com isso uma grande confusão e obscurecendo o que deveriam ser debates
muito simples. Assim, a declaração
factual ‘DEUS ESCREVEU A BÍBLIA’ muito frequentemente sofre uma mutação para se
transformar na injunção ética ‘VOCÊ TEM DE ACREDITAR QUE DEUS ESCREVEU A
BÍBLIA’.
“Isso levou alguns
filósofos, como Sam Harris, a alegar que a ciência sempre pode solucionar
dilemas éticos, pois os valores humanos sempre ocultam algumas declarações
factuais. Para Harris, todos os humanos compartilham um único valor supremo –
minimização do sofrimento e maximização da felicidade – e, portanto, todos os
debates éticos são discussões factuais concernentes ao meio mais eficaz de
maximizar a felicidade. Fundamentalistas islâmicos querem alcançar o paraíso
para poderem ser felizes, os liberais acreditam que incrementar a liberdade
humana maximiza a felicidade, e os nacionalistas alemães pensam que seria
melhor para todo mundo se se permitisse que Berlim governasse o planeta.
Segundo Harris, islâmicos, liberais e nacionalistas não estão em conflito
ético; eles estão em desacordo factual sobre o melhor modo de alcançar seu
objetivo comum.
[...]
“Costuma-se descrever a
história da era moderna como uma luta entre ciência e religião. Na teoria,
tanto a ciência como a religião estão interessadas acima de tudo na verdade,
porém, como cada uma sustenta uma verdade diferente, estariam fadadas a se
chocar”.
Para mim,
não há como contrapor razão e fé, se esta se fundamenta num livro cheio de
equívocos (que seus defensores acreditam ser escrito por uma divindade).