terça-feira, 6 de setembro de 2016

CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2016

A Campanha da Fraternidade deste ano tem o tema “Casa comum, nossa responsabilidade”, fundamentado no subtítulo da encíclica Laudato Si’, do papa Francisco, e o lema “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca”, uma perífrase ideológica de Amós 5. 24. A campanha é organizada pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), uma pretensão de ecumenismo que encobre a atuação política da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Minha primeira consideração diz respeito à inversão de valores diligenciada pela Igreja Católica (ou sob sua liderança). Desde Roma, ela passou, de uma forma crescente ao longo dos séculos, a se importar mais com o terreno, material, e menos com a (sobre)natureza espiritual, a essência cristã. Em passagens diversas dos evangelhos, Jesus distinguiu dois modus vivendi – entre esta vida e a vida-além, entre o que é de César e o que é de Deus. Paulo de Tarso, o grande pregador, aprofundou ainda mais a diferença entre os dois mundos. As maiores intervenções da Santa Sé contribuíram significativamente para fazer da Terra um “lacrimarum valle” (conforme a oração da Salve Rainha). Não bastassem os processos inquisitoriais, com perseguição, prisão, tortura e morte de centenas de milhares de homens e mulheres, o poder de sotaina apoiou as piores guerras religiosas da história. Mas não há mal que sempre dure: graças à secularização, o Catolicismo entrou em decadência, afundando-se nas próprias contradições.
João Paulo II foi o primeiro líder católico a perceber o abismo em que se metera a igreja. No começo de seu pontificado, declarou bombasticamente que “Sobre toda propriedade privada, pesa sempre uma hipoteca social”. Um grito em favor dos pobres, que rompia com o liberalismo capitalista e dava argumentos à teoria da libertação, francamente marxista. A reação conservadora não demorou a retomar o controle doutrinário. Sua figura mais proeminente era Joseph Ratzinger, que acabou usando o Anel do Pescador109.
Atualmente, o papa Francisco vem surpreendendo o mundo com um discurso antidogmático, socializante e pró-científico. Por muito menos, homens e mulheres seriam levados à fogueira pelos tribunais da Inquisição. Depois de um longo silêncio da Igreja acerca das maiores descobertas da ciência (uma autopenitência pelo processo contra Galileu), o Papa afirma que o big bang e o darwinismo são perfeitamente compatíveis com a ideia de um deus criador.
Essa tergiversação do tema foi necessária para submetê-lo agora a uma análise mais séria. Os parágrafos acima insistem na tese de que a Igreja Católica abandona os dogmas metafísicos, para, cada vez mais, ocupar-se com as ordens imaginadas pela laicização. A encíclica Laudato Si’, assinada pelo pontífice, mais parece uma agenda ecológica, que os países não conseguem formular (não obstante os esforços nesse sentido). Ainda que a preocupação com o ambiente deste “Vale de Lágrimas” tenha pautado documentos de papas anteriores, é com Francisco que ela se efetiva discursivamente. Sua concepção de uma “ecologia integral” é “inspirada” no modelo do santo xará, Franscisco de Assis110. “Irmã” ou “mãe”, o planeta ganha uma outra metáfora: casa comum. (No tópico 38, o autor incorre no equívoco que compara as regiões de floresta – Amazônia e Bacia do Congo – com um pulmão. Floresta e pulmão são antípodas, respectivamente, na produção e no consumo de oxigênio, ou no consumo e produção de dióxido de carbono.)
A nossa “casa comum”, sempre exposta às catástrofes naturais de pequenas ou grandes montas, vê-se ameaçada pelas mudanças climáticas atuais. Toda tecnologia e todo desenvolvimento não foram suficientes para distribuir os bens produzidos de uma forma igualitária. As diferenças entre ricos e pobres são geradoras de injustiça – segundo a interpretação idealista cristã, em franca contradição com a ideologia do Sermão da Montanha. Perante o atual estágio de degradação generalizada, esfuma-se a perspectiva de os pobres se tornarem ricos. Para que tal ocorresse, necessitaríamos mais três planetas (em iguais condições de temperatura e pressão). Parte do estrago ambiental é atribuída à sanha de progresso, que caracteriza o homo sapiens desde o princípio do Neolítico.
A casa encontra-se dividida. O papa quer pôr ordem nela, como se isso fosse possível pela equalização dos direitos de seus ocupantes. Mais que as políticas, as religiões impossibilitam uma casa comum. O próprio cristianismo dividiu-se com guerras fratricidas. Francisco representa apenas o segmento católico. De sua zona de conforto, chamada Vaticano, ele parece desconsiderar os fiéis de outras religiões, os quais dividem a casa a partir de crenças em deuses diferentes. Sua guinada secular, quem sabe, já constitui uma reação ao fundamentalismo islâmico, que ameaça o mundo cristão em seu território natural – a Europa.
A Campanha da Fraternidade no Brasil tem o objetivo geral de

Assegurar o direito ao saneamento básico para todas as pessoas e empenharmo-nos, à luz da fé, por políticas públicas e atitudes responsáveis que garantam a integridade e o futuro de nossa casa.

O lema escolhido pelo CONIC é uma interpretação forçada de Amós (lunático bíblico que não se reconhecia como profeta, mas previu muito fogo para as nações vizinhas e desterro de Israel): “Antes corra o juízo como as águas, e a justiça como ribeiro perene”. Jeová estava cansado dos holocaustos em seu nome, melindrado com a idolatria de outros deuses (mais uma vez). Também ele evoluiu através dos tempos, clamando por juízo e justiça. A propósito, juízo e direito podem ser tomados como sinônimos? Outra questão: por que essa obsessão pela leitura do Velho Testamento? Ele remete mais facilmente aos temas seculares?
O objetivo de saneamento básico para todos não é uma intromissão da religião na política? O estado tem condições de atender cem por cento à demanda, sem afetar ainda mais o meio ambiente? Desenvolvimento autossustentável é um mito moderno. Não há recursos suficientes para inverter o vetor da degradação em seu curso acelerado. As nações mais desenvolvidas do mundo são, concomitantemente, as que mais poluem o ar, a água e o solo. A vida é assassinada no atacado.
Por derradeiro, o ecumenismo da campanha se refere ao planeta como um todo, ao Brasil, ou ao conselho de cinco igrejas?

(Publicado em meu livro Considerações neoateístas.)

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