sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

CRÔNICA SANTIAGUENSE

As tardes de verão são insuportavelmente quentes em Santiago, malgrado a posição meridional desta cidade. A soalheira se precipita inclemente sobre as árvores da Moisés Vianna, que resiste com o estrídulo desesperado das cigarras. Os mamíferos humanos, mais sensíveis ao calor, reaparecem nas últimas horas, quando as sombras se alongam e a brisa sopra timidamente.
Ontem nos sentamos em frente à Matriz, na calçada que circunda a praça. O sino anuncia a missa, e os católicos apostólicos santiaguenses da terceira idade se aproximam da igreja. Alguém do círculo de chimarrão fala que o padre recém-chegado quer trazer os jovens de volta. Ele mal sabe que a juventude, com o espírito de liberdade que a caracteriza, já adere à onda de laicização.
Não deixo por menos, propondo ao grupo a seguinte reflexão: diz-se que os principais atributos de Deus são a onipotência, a onisciência e a onipresença, disso nenhum teísta tem dúvida. Por que se reza a ele com o intuito de pedir-lhe algo? A própria oração parece negar a onipresença: Pai Nosso, que estás nos céus
Minha irmã, frequentadora ocasional da igreja, sorri amarelo. Regina prefere não pensar em assuntos religiosos, determinada a fazer uso da razão apenas para sustentar sua fé, não para questioná-la dialeticamente. (Martinho Lutero advertira que a razão é a maior inimiga da fé.) Mais resoluta, Cris sai em defesa da pessoa que acredita no poder da oração.   
As posições acima podem ser sintetizadas, respectivamente, pelos termos alienação, medo e relativismo. Outra tríade também possível: encanto, tabu e subjetividade. Maria segue a religião que lhe foi ensinada desde a primeira infância, cujos ritos e dogmas apresentam uma verdade absoluta. Regina já consegue questionar, se é certo sua tia costureira reservar à igreja uma parte do dinheiro que ganha com muito trabalho, mas não passa a limpo as contradições no âmbito do “sagrado”. Cris pertence a uma geração mais jovem, porta-voz das minorias, defensora dos animais, adepta inconsciente da New Age.
 Antes de reconhecer a inviabilidade do diálogo iniciado por mim, ouso afirmar que o problema continua sendo o homem, criador de deuses por excelência. Toda religião não passa de ficção – que ganhou o estatuto de uma ordem imaginada.
         A conversa é encerrada informalmente. Não há mais água para o chimarrão, as luzes públicas começam a ser acesas, as cigarras diminuem seu canto de atração e a noite passa a envolver a cidade com seus tentáculos úmidos.

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