OLHOS CONTEMPLATIVOS
As
janelas do meu apartamento são enormes, feitas de vidro inteiro e transparente.
Na verdade, elas também me servem de porta, com acesso exclusivo para as
sacadas. Todos os dias, logo após me levantar, deslizo as duas partes da
cortina para os extremos do trilho.
A primeira coisa boa a me ocorrer com
esse gesto rotineiro é o gozo propiciado pela claridade. Essa sensação de
alívio com o retorno do Sol foi, certamente, muito mais intensa nos meus
ancestrais primitivos, que atravessavam com medo a noite ao longo de milhões de
anos. Os perigos ainda existem, não mais fantasmagóricos, ou de espíritos maus,
não mais representados pelo ataque de animais selvagens, senão os levados a
termo pelo próprio homem. Não é por essa herança genética (e memética),
todavia, que a noite me causa uma certa angústia.
Ao
recolher as cortinas, certifico-me que o ciclo fundamental da vida se repete,
cujo percebimento me dá a certeza de que estou vivo dentro dele.
Em
seguida, através da janela, contemplo a manhã com o que ela apresenta de mais
sublime e inefável: o céu azul. Às sensações já expressas acima, junta-se uma
que identifico como leveza, a qual me leva a descer o olhar para as ruas que se
encontram em frente, onde as pessoas seguem em todas as direções, aparentemente
livres dentro de uma ordem intersubjetiva que não imaginam estar presas.
Não
estou à espreita do que faz meu vizinho. Por dois motivos óbvios: ante minha
janela, não há casas ou edifícios residenciais; e já evoluí o suficiente para
não me ater a enxerimentos, a mexericos.
O vidro transparente da janela,
dependendo do ângulo e da menor incidência de luz, faz as vezes de espelho. Ali
me vejo também, com uns olhos contemplativos.
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