para o
pôr do sol
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é preciso
sol
para se pôr
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e olhos
que se põem
nas nuvens
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O culto ao passado evidencia uma contradição (que é ignorada pelos cultuadores com o propósito de justificar a cíclica rememoração). O cavaleiro elegantemente pilchado na Semana Farroupilha, por exemplo, imita o homem real, de carne e osso, que viveu dias difíceis outrora, ou não passa de uma representação do mito arquetípico do “centauro”, do “monarca”? Até onde a memória de nossos antepassados alcança, não há testemunho de que a vida no campo e os valores sócio-culturais a ela inerentes constituíssem algo maravilhoso. Depois de guerras brutais, fratricidas, que mancharam de sangue a Província de São Pedro, o gaúcho obrigou-se a trabalhar duríssimo no lombo do cavalo ou no cabo da enxada e do arado. Na entressafra, tropeava e carreteava, para não ser absorvido pelo latifúndio (que transformava em peão os desafortunados, pusilânimes ou indolentes). Nenhuma das alternativas expressas acima responde à pergunta que as antecede. O tradicionalismo é uma praxe social do presente. Os homens do nosso tempo dão-se ao luxo de reviver, pelo menos uma vez ao ano, o hábito de andar a cavalo pelas ruas da cidade, num padrão determinado pelos estatutos do MTG. Engana-se o analista que aponta o “presente degradado” como causa da tradição. Pelo contrário, é um excesso de riqueza e ócio que produz esse devaneio, essa fantasia sobre a identidade do gaúcho, ou gauchidade. Os nossos antepassados não tinham essa cultura, preocupavam-se muito com o presente – e com o futuro. A contradição, portanto, consiste na discrepância entre o que somos e o que fomos.
(Este artigo é uma tentativa simples de pensar algo diferente que não seja a mesma coisa.)
Nesta semana, mais precisamente no dia 18, às 20 horas, o livro 1ª Brigada de Cavalaria Mecanizada será lançado em Santiago. O Cel Refm Cláudio Moreira Bento, seu organizador, virá do Rio de Janeiro para o evento. Os coautores são Luiz Ernani Caminha Giorgis (Porto Alegre) e Carlos Fonttes (Uruguaiana), ambos militares da Reserva. Fonttes já publicou a história da nossa Brigada "José Luiz Menna Barreto". O Cel Bento é um historiador de alcance internacional, presidente da Academia de História Militar Terrestre do Brasil. É autor, entre outras obras, de O Exército Farrapo e os seus chefes, O negro na sociedade do Rio Grande do Sul, Estrangeiros e descendentes na História Militar do Rio Grande do Sul, Regionalismo sul-rio-grandense, As batalhas de Guararapes, A grande festa dos lanceiros, Símbolos do Rio Grande do Sul - subsídios para sua revisão tradicionalista legal. O currículo do homem é admirável. O local do evento, em vista do número de convidados, deverá ser o Círculo Militar.
RINCÃO CRIOULO
(A Santiago)
Sobre o tope altaneiro da coxilha,
Sentinela avançada da fronteira,
Bravura de lanceiro farroupilha,
Tradição de bondade missioneira...
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Em teus campos, ao sol e à geada, brilha
A estância, alma dos pampas, sobranceira!
Amo o galope alegre da tropilha
E a gaita... no galope da “rancheira”...
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Reduto ameno do costume antigo,
Que lembra a luta brava em campo largo,
Daqueles tempos que bem longe vão!...
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Vida simples, campeando o gado amigo,
Um “matambre”, uma “china” e um mate amargo
No aconchego do fogo do galpão...
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Salm de Miranda, quando serviu em Santiago como major, foi o primeiro presidente do Círculo Militar. Em 5 de maio de 1944, escreveu esse soneto. Mais tarde, foi diretor da Biblioteca do Exército e diretor do Departamento de Assistência à Infância de Pernambuco (1956). Livros de Salm de Miranda: Floriano Peixoto, Um Nordeste, Rio Doce: impressão de uma época, O açude e outras histórias...
Poesia e prosa
A arte que se faz com a ideia, e portanto com a palavra, tem duas forma – a poesia e a prosa. Visto que ambas se formam de palavras, não há entre elas diferença substancial. A diferença que há é acidental, e, sendo acidental, tem que derivar-se daquilo que é acidental, ou exterior, na palavra. O que há de exterior na palavra é o som: o que há, pois, de exterior numa série de palavras é o ritmo.
Poesia e prosa não se distinguem, pois, senão pelo ritmo. (...) o ritmo consiste numa graduação de sons e de faltas de som, como o mundo na graduação do ser e do não-ser. Quer isto dizer que o ritmo consiste numa distribuição de palavras, que são sons, e de pausas, que são faltas de som. Às palavras, como existem, compete um ritmo de variação, dependente da extensão das palavras, da sua acentuação, da sua qualidade e quantidade silábica, e também, do seu sentido, quer próprio, quer dependente das outras palavras, que lhes são contexto. Às pausas, como não existem, compete tão somente um ritmo de extensão; isto é, a pausa como não é mais que a falta de uma coisa (o som) não tem variante senão a sua duração. A pausa é mais longa ou mais breve; só isto.
Na prosa, que é a linguagem falada, escrita, estas pausas são dadas por uma coisa a que se chama de pontuação, e a pontuação é determinada exclusivamente pelo sentido. (...) Se, porém, quisermos acentuar o ritmo para além da ordem lógica, em virtude de em nós a emoção, que produz a entonação (e o canto), predominar sobre a ideia propriamente dita, abriremos pausas artificiais no discurso; a essas pausas são artificiais porque a emoção, quanto a ideia, é externa (visto que não é a ideia), e portanto artificial.
Como estas pausas artificiais não podem ser designadas por pontuação, pois a pontuação designa as pausas naturais, temos que designá-las por qualquer coisa que, marcando-as acentuadamente, todavia as marca como artificiais. Isto fazemos dispondo o discurso em linhas separadas, sendo a pausa indicada pela passagem de linha. A este gênero de discurso se chama poesia. A pausa de fim de verso é independente do sentido, e é tão nítida como se ali houvesse pontuação. (...) O discurso poético é exposto em linhas precisamente para que se faça uma pausa, artificial embora, onde a linha termina. A poesia é assim a prosa feita música, ou a prosa cantada.(...)
Nos princípios da poesia, é o próprio ritmo musical que estabelece estas pausas: a pausa da voz que canta acentua a pausa do fim do verso. Mais tarde, por um processo ainda vagamente musical, que é o quantitativo, dá-se a cada verso um igual valor musical, e a voz conhece por antecipação onde a linha acaba, sendo-lhe dada, assim uma guia para a leitura. Mais tarde, dispensa-se essa base musical mas, para que a guia não falte, estabelece-se um sistema de referências pela qual se sabe onde termina o verso, e esse sistema é a rima. Mais tarde ainda, fixo já o verso em determinadas medidas quantitativas pelas sílabas que não pela quantidade, a rima dispensa-se, é o chamado verso branco – o regular. Finalmente, se chega ao justo critério do verso – de que basta marcar pela volta da linha que o discurso está escrito em verso para se dever ler como tal, para efetivamente ser tal.
Assim se chega ao critério moderno do verso, em que não há exigência de quantidade de sílabas certas, nem de rima. A linha isolada é uma unidade rítmica. A quantidade rítmica depende, como, aliás, dependeu sempre, do poeta.
Assim, a diferença entre a prosa e o verso, sem desaparecer, longe até de desaparecer, acentua-se tal qual é, sem mais nada. O verso é a prosa artificial, o discurso disposto musicalmente. Não é outra a diferença entre as duas formas da palavra escrita.”
Fernando Pessoa