domingo, 13 de junho de 2010

A PALAVRA IMPERFEITA

Depois de assistir à Alemanha e Austrália (o primeiro jogo bom desta Copa), concluí a leitura do livro A palavra imperfeita, de Donaldo Schüler. O pequeno livro desse escritor, crítico e tradutor catarinense é extraordinário, traz uma luz capaz de iluminar a maiores distâncias aquilo que o leitor/ estudioso tenta compreender. No último capítulo, Horizontes da contradição, Schüler faz um estudo de cinco poemas, associando-os, respectivamente aos "indícios da contradição", "exposição da contradição", "fundamentos da contradição", "experiência da contradição" e "níveis da contradição". Os cinco poemas são os seguintes: Porfissão de fé, de Olavo Bilac; Os sapos, de Manuel Bandeira; Canto órfico, de Carlos Drummond de Andrade; O ovo de galinha, de João Cabral de Melo Neto; e Poema didático em três níveis, de Affonso Romano Sant'Anna. Da análise que faz do último, transcrevo alguns excertos interessantes:
"A poesia tida como alucinação, embriaguez, manifestação irracional não é recente. Platão, preocupado em organizar racionalmente o estado e a vida, confinou-a à esfera instintiva e a baniu como perniciosa. Sentindo-lhe o poder sobre a emotividade, não a tolerou na República. Os românticos cultivaram a poesia com motivos pelos quais Platão a recusou. Inimigos da razão e cultores dos sentimentos, ao escrever, sentiam-se em estado de embriaguez. A poesia lhes acontecia como ditada por voz estranha.
"Poe, contra o romantismo, inaugurou a moderna poesia cerebrina representada, entre outros, por Mallarmé, Pound, Oswald de Andrade, João Cabral e os concretistas. Fora destas fronteiras se colocam os movimentos irracionalistas, a literatura popular, a sobrevivência do lirismo. Romano de Sant'Anna vive o entrechoque das forças antagônicas e permanece indeciso. Se proclama salutares as irrupções ébrias, guarda também o cerebralismo das notas. Será a buscca de síntese ou apenas a exposição da contradição?
"No século passado começa a preocupação científica pela palavra. Procuram-se leis para explicar a transformação das línguas. Delimita-se o território da linguagem confrontado com os outros campos das ciências humanas. Procura-se reduzir a palavra ao que lhe é essencial, desbastada do que a ela adere secundariamente. O criador da linguística moderna, Ferdinand de Saussure, encaminha a nova ciência para a distinção entre palavra (o signo) e a coisa designada. Enquanto a ciência da linguagem levantava barreiras entre palavras e coisas, os poetas procuraram distanciar a arte da vida, no intuito de atingir a poesia pura. O rompimento da unidade arte-vida sacudiu violentamente as bases do fazer poético.
"Diante desta cisão Romano de Sant'Anna toma a decisão pelo corpo. Contra os que restringem a invenção poética ao texto, o autor de Poesia sobre poesia localiza-lhe a gênese antes do texto. Este recuo resiste aos esforços dos propugnadores da poesia pura, e fundamenta a invasão do território poético pelo vocabulário a que os puristas recusam o reconhecimento de poeticidade. O corpo representa a aceitação da finitude contra os sonhos de perfeição, identificados com a morte:
Sou corpo
presente em missão. Estou no meio. Só os mortos e escolhidos
vão ao fim (p. 19).
"O fazer poético configura-se, portanto, antes do fim. O poetar adia a perfeição e o fim. É ato de quem está no meio, a caminho. A perfeição está no fim do caminho, mas aí deve-se buscar o fim a poesia. A perfeição nega a vida, porque é o fim da vida. Operada a coincidência poesia-vida, não se pode estender a vigência da poesia para além do fim da vida. Em Bilac, a perfeição foi desiderato. Em Romano de Sant'Anna, perfeição é aniquilamento, morte. A decisão pelo corpo arrasta consigo a escolha da imperfeição. A carência cobre todo o percurso da grafia e o poeta a cultiva. Na oposição poesia-vida, o corpo surge como síntese. Corpo é grafia. Mas, ao absorver os polos opostos poema-corpo, ingere também a fratura:
Poema que tem sezões e se fratura (p. 22).
"A fratura está no destino do corpo. Processa-se no distanciamento dos outros corpos, na identificação de si mesmo e do outro, nas contínuas opções excludentes oferecidas por um mundo múltiplo, na irremediável situação antes do fim. Ao se fazer corpo, o poema opta pela historicidade e pelo dilacerante jogo das antíteses".
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Livro que estou na expectativa de receber esta semana é Estruturalismo e teoria da literatura, de Luiz Costa Lima. Donaldo Schüler escreve: "Luiz Costa Lima realiza uma respeitável esforço teórico na penetração da obra literária. Seu livro, Estruturalismo e teoria da literatura, coloca-se, sem favor, entre os melhores que se produziram no gênero".

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