segunda-feira, 21 de junho de 2010

INVENÇÃO SARAMAGUIANA

Há muitas maneiras de transcrever a fala de um personagem, o chamado discurso direto. A mais conhecida delas consiste no emprego do velho travessão, anteposto ou posposto a um verbo discendi. Um exemplo que me ocorre agora é do conto O afogado, do Caio Abreu:
- Alfa é meu nome - disse.
E ele perguntou:
- Esse é teu nome de guerra?
E ele respondeu:
- Não. Esse é meu nome de paz.
A pós-modernidade, entre outras coisas, tentou abolir o travessão. Ultimamente, voltou a ser empregado.
Para substituir o travessão, alguns escritores empregam as aspas, para indicar o que diz o personagem. Com ou sem o verbo discendi. Rubem Fonseca, que é da mesma geração do Caio, utilizava-se desse recurso. Exemplo retirado do romance A grande arte:
Quando pedi a chave do meu quarto na portaria do Grande Hotel a mocinha sorriu, conivente.
"A Mercedes apanhou", disse ela.
Ao ler O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, conheci a maneira saramaguiana de passar ao discurso direto: apenas a letra maiúscula depois de uma vírgula ou ponto, com a presença ou não do verbo discendi.
Exemplo extraído de Ensaio sobre a cegueira (página 128):
Assim estão as coisas lá fora, rematou o velho da venda preta, e ainda eu não sei tudo, só falo do que pude ver com os meus próprios olhos, aqui interrompeu-se, fez uma pausa e corrigiu, Com os meus olhos, não, porque só tinha um, agora nem esse, isto é, tenho um mas não me serve, Nunca lhe perguntei por que não usava um olho de vidro, em vez de trazer a pala, E para que o quereria eu, faça o favor de me dizer, perguntou o velho da venda preta, É o costume, por causa da estética, além disso é muito mais higiénico, tira-se, lava-se e põe-se, como as dentaduras, Sim senhor...
O diálogo é facilmente percebido pelo leitor. Em razão desse recurso, as páginas de Saramago são compactas, cheias, mais demoradas para serem lidas.

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