sexta-feira, 2 de abril de 2010

OS TRÊS DEGRAUS DA CRUELDADE

Nenhum livro contém maior número de verdades, de coisas até então inauditas, que Para além de bem e mal, de F. Nietzsche. Nenhum outro me levou a ler uma, duas, três vezes (respectivamente, em 1989, 1990 e 1992). Mais as vezes incontáveis em que o abri à revelia, inspirando-me nele para escrever sobre assuntos "delicados", que ainda causam melindres, ou para transcrever algumas das verdades expressas pelo filósofo. Nesta manhã de Sexta-feira Santa, não foi diferente. Página 69, aforismo 55:
"Há uma grande escada da crueldade religiosa, com muitos degraus; mas três deles são os mais importantes. Outrora sacrificavam-se homens ao seu deus, e talvez aqueles a quem mais se amava, - eram desse tipo os sacrifícios dos primogêntitos, característicos de todas as religiões pré-históricas, e também o sacrifício do imperador Tibério na gruta de Mitra da ilha de Capri, este o mais arrepiante de todos os anacronismos romanos. Mais tarde, durante a época moral da humanidade, sacrificavam-se ao seu deus os instintos mais fortes que se possuía, a 'natureza' própria; é esta alegria festiva que brilha no olhar cruel do asceta, do homem entusiasticamente 'antinatural'. E, finalmente, o que ficava ainda para sacrificar? Não se teve, por fim, que sacrificar tudo que era consolador, sagrado e salutar, toda a esperança, toda a fé na harmonia oculta, em bem-aventuranças e justiças futuras? Não devia sacrificar-se o próprio Deus e, por crueldade para consigo, adorar a pedra, a estupidez, a força da gravidade, o destino, o nada? Sacrificar Deus ao nada - esse mistério paradoxal da extrema crueldade foi reservado à geração que precisamente agora surge no horizonte: todos nós já conhecemos alguma coisa disto".
A Bíblia é o mais completo, o mais extraordinário relato dos três tipos de sacrifícios a que se refere Nietzsche.

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