terça-feira, 19 de janeiro de 2010

CANALHA!

Hoje me chegou Canalha!, último livro de Fabrício Carpinejar (filho de Carlos Nejar e Maria Carpi). O livro ganhou o 51º Prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas. Nos passos do pai, Carpinejar envereda pela prosa, depois de se tornar reconhecido na poesia. A propósito, os gaúchos estão por cima: Altair Martins ganhou o São Paulo de Literatura e Carpinejar, o Jabuti.
A seguir, transcrevo a crônica As tampinhas do leite:
Ao acordar, logo me deparo com a dobra de papelão da caixa do leite. Todos os dias olho para a pia e lá está soberano o pequeno cone. Um origami da pressa. Um barquinho cortado abruptamente de noite. Percebo a serrinha da faca na superfície. Trabalho malfeito. O triângulo desigual. Pego com doçura o lacre e examino, tal letra oriental me provocando, tal peixe cuspindo oxigênio. Poderia implicar e perguntar para minha mulher o motivo de ela nunca colocar fora. Seria difícil? Cansativo? O lixo fica a quatro passos. A primeira coisa que passa pela cabeça é "que preguiça". A segunda é "que desleixo". Mas deixo de bancar o juiz, porque aquilo não me irrita. O papelzinho me enternece, me faz cócegas como se alguém mexesse nos meus pés.
Eu me vejo verdadeiramente acordado ao observar a dobra me aguardando. Sério. Espio antes de chegar. Fiquei dependente da tampinha. Amo a tampinha. É agradável dividir o espaço com ela. Não me dá trabalho. Sugere sede, fome, dependência. Por ela, sei que minha mulher está em casa, está comigo. É vizinha da linha dos lábios dela. É seu vício, sua senha. Cartolina colorida de criança. É sua maneira de me animar, de dizer que vive comigo. É um código morse. Um aviso apaixonado. Ela deixa pistas discretas de si e vou recolhendo pelo resto da casa, para não encerrar a sedução. Nosso jeito de fazer palavras cruzadas. Ela se anuncia logo cedo. Fico com vontade de lamber os pingos de leite como um gato. Mas me contenho por educação. A dobra é um leque para botar minha unha dentro do vento.
Minha mulher não põe bilhetes na geladeira, não borra o espelho com batom, não grava recados na secretária eletrônica, não força provas de paixão, não forja testemunhos. É suave, sugestiva, pede a compreensão e o mistério. Pede que eu a entenda antes que diga algo. Pede que aceite o espaço de cada um, os hábitos de cada um, e preserve as individualidades com cuidado. O pedacinho da caixa de manhã é como a súplica de um bom-dia. É o equivalente diurno da rolha do vinho. O buquê de um beijo. Minha mulher é diferente. Ela me escreve tampinhas de papel. Uma tampinha por dia. Uma década de tampinhas. Uma década em que eu não censuro o amor, deixo ele dormir entre a gente na mesma cama.

Um comentário:

Castro Lisboa disse...

Canalha, canalha...
Quanto lirismo numa crônica! É incrivel como o poeta que se torna prosador não abandona o cuidado, que aprendeu nos veros, com as palavras que usa. É poético cuidar de cada uma delas com todo esmero, fazer com que se somem e multipliquem seu poder encantatório!