domingo, 28 de setembro de 2008

A GEOMETRIA DE UMA LINHA SÓ

Como fazer uma imagem em síntese de alguém que já é a própria figura do essencial? Uma linha só? Não dá para ser com menos traços? O verso de João Cabral de Melo Neto é, para usar imagem sua, simples como o sol de um comprimido de aspirina. É enxuto, mas potente, e inteiriço como um ovo, o substantivo que ele talhou a "mil inacabáveis lixas", no desconcertante poema O ovo de galinha.
Morte e Vida Severina, seu poema mais famoso, é auto de Natal criado sob encomenda em 1956. Só dez anos depois, com música de Chico Buarque, o texto seria encenado e viraria, literalmente, uma "peça" de resistência.
Mas Cabral militava mesmo era contra sentimentalismos. Dizia não gostar de música. Rigoroso engenheiro da palavra, negava geometricamente a criação pelo descontrole, pela paixão: queria a poesia pelo método, exata. Sua proeza foi ser, como se tentou traduzir na figura acima, ao mesmo tempo visceral e de pedra.
(Matéria de Marcílio Godoi, publicada na revista Língua Portuguesa de setembro de 2008.)

Nenhum comentário: