sábado, 31 de maio de 2008

EXISTE UMA ESCRITA POÉTICA?

"Nos tempos clássicos, a prosa e a poesia são grandezas, a diferença entre elas é mensurável; não estão nem mais nem menos afastadas do que dois números diferentes, como eles contíguas, mas outras pela diferença mesma de sua quantidade. Se chamo prosa a um discurso mínimo, veículo mais econômico do pensamento, e se chamo a, b, c, atributos particulares da linguagem, inúteis mas decorativos, tais como o metro, a rima ou o ritual das imagens, toda a superfície das palavras se alojará na dupla equação de M. Jourdain:
Poesia = Prosa + a + b + c
Prosa = Poesia - a - b - c
"Donde ressalta evidentemente que a Poesia é sempre diferente da Prosa. Mas essa diferença não é de essência, é de quantidade. Ela não atenta, pois, contra a unidade da linguagem, que é um dogma clássico. Dosam-se diferentemente as maneiras de falar segundo as ocasiões sociais: aqui, prosa ou eloqüência, ali, poesia ou preciosismo, todo um ritual mundano de expressões, mas por toda parte uma só linguagem, que reflete as categorias eternas do espírito. A poesia clássica era sentida apenas como uma variação ornamental da Prosa, fruto de uma arte (isto é, de uma técnica), jamais como uma linguagem diferente ou como produto de uma sensibilidade particular. Toda poesia não passa então da equação decorativa, alusiva ou carregada, de uma prosa virtual que reside em essência e em potência em qualquer maneira de se exprimir. 'Poética', nos tempos clássicos, não designa nenhuma extensão, nenhuma espessura particular do sentimento, nenhuma coerência, nenhum universo separado, mas somente a inflexão de uma técnica verbal, a de 'exprimir-se' segundo regras mais bonitas, portanto mais sociais do que aquelas da conversação, isto é, de projetar fora de um pensamento interior brotado todo armado do Espírito, uma palavra socializada pela evidência mesma de sua convenção.
"Dessa estrutura sabe-se que nada resta na poesia moderna, aquela que parte, não de Baudelaire, mas de Rimbaud, a menos que se retome num modo tradicional adaptado os imperativos formais da poesia clássica; os poetas instituem doravante a sua palavra como uma Natureza fechada, que abraçaria a um só tempo a função e a estrutura da linguagem. A Poesia já não é mais então uma Prosa decorada de ornamentos ou amputada de liberdades. É uma qualidade irredutível e sem hereditariedade. Não é um atributo, é uma substância e, por conseguinte, pode muito bem renunciar aos sinais, pois carrega a sua natureza em si, e nada tem a fazer com apontar no exterior a sua identidade: as linguagens poéticas e prosaicas são suficientemente separadas pra poder dispensar os próprios sinais de sua alteridade.
Além disso, as relações pretendidas entre o pensamento e a linguagem ficam invertidas; na arte clássica, um pensamento totalmente formado vem a parir uma palavra que o 'exprime', o 'traduz'. O pensamento clássico é sem duração, a poesia clássica só tem aquela que é necessária para o seu arranjo técnico. Na poética moderna, ao contrário, as palavras produzem uma espécie de contínuo formal de que emana pouco a pouco uma densidade intelectual ou sentimental impossível sem eles; a palavra é então o tempo espesso de uma gestação espiritual, durante a qual o 'pensamento' é preparado, instalado pouco a pouco pelo acaso das palavras. Essa oportunidade verbal, de onde vai cair o fruto maduro de uma significação, supõe pois um tempo poético que não é mais o de uma 'fabricação', mas o de uma aventura possível, o encontro de um signo e de uma intenção. A poesia moderna se opõe à arte clássica por uma diferença que pega toda a estrutura da linguagem, sem deixar entre essas duas poesias outro ponto comum que não seja uma intenção sociológica.
"A economia da linguagem clássica (Prosa e Poesia) é relacional, isto é, as palavras nela são o mais possível abstratas em proveito das relações. Nenhuma palavra aí é densa por si mesma, mas chega a ser o signo de uma coisa, é muito mais a via de uma ligação. Longe de mergulhar numa realidade interior consubstancial ao seu propósito, estende-se, logo que proferida, rumo a outras palavras, de maneira que forme uma cadeia superficial de intenções. Um olhar sobre a linguagem matemática permitirá talvez compreender a natureza relacional da prosa e da poesia clássica: sabe-se que, na escrita matemática, não somente cada quantidade é provida de um sinal, mas ainda as relações que ligam essas quantidades são também transcritas, por uma marca de operação, de igualdade ou de diferença; pode-se dizer que todo o movimento do contínuo matemático provém de uma leitura explícita de suas ligações. A linguagem clássica é animada por um movimento análogo, ainda que evidentemente menos rigoroso: suas 'palavras', neutralizadas, ausentadas pelo recurso severo a uma tradição que absorve o seu frescor, fogem do acidente sonoro ou semântico que concentraria em um ponto o sabor da linguagem e estancaria o movimento inteligente em benefício de uma volúpia mal distribuída. O contínuo clássico é uma sucessão de elementos cuja densidade é uniforme, submetidos a uma mesma pressão emocional, e retirando deles toda a tendência a uma significação individual e como inventada. O próprio léxico poético é um léxico de uso, não de invenção: as imagens são aí particulares em conjunto, não isoladamente, por costume, não por criação. A função do poeta clássico não é pois encontrar palavras novas, mais densas ou mais brilhantes; é ordenar o protocolo antigo, perfazer a simetria ou a concisão de uma relação, trazer ou reduzir um pensamento ao limite exato de um metro. Os achados clássicos são achados de relação, não de palavras: é uma arte da expressão, não da invenção; as palavras, aí, não reproduzem como mais tarde, por uma espécie de altura violenta e inesperada, a profundeza e a singularidade de uma experiência; são trabalhados em superfície, segundo as exigências de uma economia elegante ou decorativa. Fica-se encantado com a formulação que os reúne, não com o seu poder ou com as suas belezas próprias."
"Por certo a palavra clássica não atinge a perfeição funcional da rede matemática: as relações não são aí manifestadas por sinais especiais, mas apenas por acidentes de forma ou de disposição. É o afastamento mesmo das palavras, seu alinhamento que cumpre a natureza relacional do discurso clássico; usados num pequeno número de relações sempre semelhantes, as palavras clássicas estão a caminho de uma álgebra: a figura retórica, o clichê são os instrumentos virtuais de uma ligação; perderam a densidade em proveito de um estado mais solidário do discurso; operam à maneira das valências químicas, desenhando uma área verbal cheia de conexões simétricas, de estrelas e nós de onde surgem, sem nunca ter o descanso de um espanto, novas intenções de significação. Mal as parcelas do discurso clássico entregam o seu sentido, já se tornam veículos ou anúncios, transportando sempre mais adiante um sentido que não quer depositar-se no fundo de uma palavra, mas estender-se na medida de um gesto total de intelecção, isto é, de comunicação.
"Ora, a distorção a que Victor Hugo tentou submeter o alexandrino, que é o mais relacional de todos os metros, já contém todo o futuro da poesia moderna, pois que se trata de aniquilar uma intenção de relações para substituí-la por uma explosão de palavras. A poesia moderna, de fato, já que se deve opô-la à poesia clássica e a toda prosa, destrói a natureza espontaneamente funcional da linguagem e dela só deixa subsistir as bases lexicais. Das relações, ela só conserva o movimento, a música, não a verdade. A Palavra explode acima de uma linha de relações esvaziadas, a gramática fica desprovida de sua finalidade, torna-se prosódia, não é mais do que uma inflexão que dura para apresentar a Palavra. As relações não são propriamente suprimidas, são simplesmente lugares guardados, são uma paródia de relações e esse nada é necessário pois é preciso que a densidade da Palavra se eleve fora de um encantamento vazio, como um barulho e um signo sem fundo, como 'um furor e um mistério'.
"Na linguagem clássica, são as relações que conduzem a palavra e depois a arrastam imediatamente rumo a um sentido sempre projetado; na poesia moderna, as relações não são mais do que uma extensão da palavra, é a Palavra que é “a morada”, é implantada como uma origem na prosódia das funções, ouvidas mas ausentes. Aqui as relações fascinam, é a Palavra que alimenta e cumula como o desenvolvimento súbito de uma verdade; dizer que essa verdade é de ordem poética é apenas dizer que a palavra poética nunca pode ser falsa porque ela é total; brilha com uma liberdade infinita e se propõe a irradiar em direção a mil relações incertas e possíveis. Abolidas as relações fixas, a palavra não tem mais que um projeto vertical, é como um bloco, um pilar que mergulha num total de sentidos, de reflexos e de remanescências: é um signo de pé. A palavra poética é aqui um ato sem passado imediato, um ato sem entornos, e que não propõe senão a sombra espessa dos reflexos de todas as origens que lhe estão vinculadas. Assim, por trás de cada Palavra da poesia moderna subjaz uma espécie de geologia existencial, onde se reúne o conteúdo total do Nome, e não mais o seu conteúdo eletivo como na prosa e na poesia clássicas. A Palavra não é mais dirigida de antemão pela intenção geral de um discurso socializado; o consumidor de poesia, privado do guia das relações seletivas, desemboca na Palavra, frontalmente, e recebe como que uma quantidade absoluta, acompanhada de todos os seus possíveis. A Palavra é aqui enciclopédica, contém simultaneamente todas as acepções entre as quais um discurso relacional lhe teria imposto escolher. Cumpre então um estado que só é possível no dicionário ou na poesia, ali onde o nome pode viver privado de seu artigo, reduzido a uma espécie de grau zero, prenhe ao mesmo tempo de todas as especificações passadas e futuras. A Palavra tem aqui uma forma genérica, é uma categoria. Cada palavra poética é assim um objeto inesperado, uma caixa de Pandora de onde saem voando todas as virtualidades da linguagem; é portanto produzida e consumida com uma curiosidade particular, uma espécie de gulodice sagrada. Essa fome da Palavra, comum a toda a poesia moderna, faz da palavra poética uma palavra terrível e desumana. Institui um discurso cheio de buracos e cheio de luzes, cheio de ausências e de signos supernutritivos, sem previsão nem permanência de intenção e por isso mesmo tão oposto à função social da linguagem, que o simples recurso a uma palavra descontínua abre a via de todas as Sobrenaturezas."
(MAIS TARDE, POSTAREI O RESTANTE DO ENSAIO DE ROLAND BARTHES)

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