terça-feira, 2 de maio de 2023

FUNÇÃO DESMITIFICADORA

A religião na Grécia antiga já entrava em declínio, quando a Filosofia surgiu 2,6 milênios antes do presente. Uma das causas para essa desimportância, não observada noutros lugares (como Suméria e Egito), era a inexistência de uma classe sacerdotal forte. A busca e a determinação dos primeiros filósofos, no sentido de responder pela constituição do cosmos, pouco contribuiu para a desmitificação da realidade. A primeira manifestação desmitificadora coube a Xenófanes, que acusou o antropomorfismo: “Dizem os Etíopes que [os seus deuses] são negros e de nariz chato, fazem-nos os Trácios de olhos azuis e cabelos ruivos” (PENEDOS, 1984, p. 65). Para o filósofo, deus era único e não tinha nada a ver com os humanos, mas acreditava num deus. Com os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles, o viés cosmológico é substituído pelo antropológico, quando a educação, a política e a ética passaram a constituir uma forma originária de humanismo (como produto extraordinário da razão). A despeito do enfraquecimento da religião, um tribunal democrático (ainda a manter a herança mítica da oligarquia) condenou Sócrates à morte por não ensinar sobre os deuses oficiais – Zeus e toda sua equipe de olimpianos. A morte do mestre levaria Platão a idealizar uma nova paideia, um novo projeto educacional para a formação do homem grego, com especial interesse no filósofo, que estaria habilitado a governar a cidade com justiça. Depois de vinte e poucos séculos, referimo-nos ao elemento fundante da religião grega como o mito simplesmente. Na época, todavia, não havia distinção entre mito e religião: as divindades hoje mitológicas eram vivas, alimentadas pela fé das pessoas daquele tempo e espaço. Essas pessoas rendiam cultos, matavam e morriam por seus deuses, modo de existência representado espetacularmente pelas tragédias de Sófocles, Eurípedes e Ésquilo. A execução de Sócrates constituiu a prova mais conhecida da indistinção referida acima. Anaxágoras e Aristóteles, antes e depois de Sócrates, também sofreram acusações por impiedade ou ateísmo. O primeiro foi banido de Atenas, e o segundo se mudou voluntariamente da cidade, para impedir que ela cometesse uma grande injustiça pela segunda vez. Em seguida, a Grécia foi dominada pelos macedônios e, pouco mais tarde, pelos romanos. A cultura grega, como um todo, sofreu uma debacle. Os mitos religiosos sobreviveram como literatura, e as ideias filosóficas ainda ressurgem de tempo em tempo, sejam nos estoicos romanos, em Agostinho, em Tomás de Aquino, no Renascimento, nos relativistas modernos, enfim, em todo estudante da história do pensamento filosófico. A extinção dos deuses gregos seguiu uma regra determinista observada noutras sociedades, em diferentes épocas. Nestes dias, ninguém mais crê na existência de Innana, Enlil, Ra, Osíris, Odim, Thor, El, Baal, Tezcatlipoca, Xólotl, Tupã, Guaraci, entre outras divindades cultuadas no passado, acreditadas como se fossem efetivamente reais. Há exceções, obviamente, como aqueles deuses ainda cultuados nas diversas sociedades em volta do planeta (hoje agrupadas em grandes blocos mais ou menos definidos como Oriente e Ocidente). Uma dessas exceções consiste num deus surgido no deserto, do fogo e da tempestade, à semelhança de Seth, Zeus, Thor, Tupã, entre outros que controlavam o raio. Nas sociedades primitivas, o raio e o trovão causavam muito medo nas pessoas, que os associavam a um poder sobrenatural personificado. Por isso, a semelhança entre as criaturas antropomórficas em lugares distintos. A região em que esse deus foi alimentado por seguidores era Midiã, ao noroeste da atual Arábia Saudita. O destino desse deus midianita sequer imitaria os demais caso não passasse por Midiã um líder religioso, que casaria com a filha do patriarca local (Ex 2:16-21). Ao invés do esquecimento, o deus local foi levado para a terra de Canaã (uma obsessão imigratória desde Abraão). Depois da morte obscura de seu fiel mais importante (Deu 34:5), o deus do deserto passa a concorrer com deuses mais antigos, cultuados desde a vinda dos imigrantes caldeus, os quais colonizaram a chamada “terra prometida”. Por fatores não registrados ou ocultos da história, El e Baal foram subsumidos evolutivamente pelo deus então transformado em único, porque o novo reino assim o exigia. Seu nome: Javé. A lacuna ainda não inteiramente esclarecida, em razão da falta de dados historiográficos, consiste justamente nessa unificação das divindades, como requisito indispensável para a construção do templo de Jerusalém. A grande criação do monoteísmo, a qual tanta glória é atribuída aos judeus, passa pelo momento em que uma decisão protocolar empodera Javé como deus único, senhor do Universo. O nome que o identificava anteriormente é substituído aos poucos por denominações mais afetivas e universais, como simplesmente deus, senhor, pai. A classe sacerdotal extremamente forte, em Jerusalém e em Roma (Vaticano), bloqueou qualquer intervenção racional, filosófica ou científica. Fundantes de duas grandes religiões do mundo, os mitos judaico-cristãos são tidos como histórias verdadeiras. Assim continuará, enquanto houver organizações religiosas em torno da crença e pessoas que se filiam a tais organizações. Todo o efeito desmitificador das ideias ou descobertas de um Feuerbach, de um Darwin, de um Nietzsche, de um Freud, entre outros, ainda não foi suficiente para determinar o fim de uma grande ilusão. REFERÊNCIA Bíblia. Português. Bíblia Sagrada. Tradução dos originais dos Monges de Maredsous (Bélgica). – 28ª ed. – São Paulo: Editora Claretiana, 1980. PENEDOS, A. J. Introdução aos pré-socráticos. Porto-Portugal: Rés-Editora Lda, 1984.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

MEIO TERMO

Ante a dúvida se vivemos no melhor dos mundos possíveis, os contemporâneos percebem um meio termo entre Leibniz e Voltaire, ou seja, nem o melhor dos mundos possíveis nem o pior. Os mal-estares destes dias denegam o excesso de otimismo; por outro lado, as conquistas da civilização (especialmente do lado ocidental) depõem contra o pessimismo. A degradação ambiental, as doenças (do corpo e da alma), as guerras e a fome são apenas alguns dos fatores que tornam o mundo uma distopia, um lugar de vida não prazerosa. A propósito das guerras, ainda estamos muito próximos do século XX, o mais belicoso de todos os tempos (levando-se em conta o poder de matar massivamente). O conflito Rússia versus Ucrânia ainda remonta à belicosidade que caracterizou a relação de poder entre estados nacionais. Charles Taylor, filósofo canadense, aponta três mal-estares da atualidade, todos relacionados ao indivíduo, sem a amplitude acima referenciada: o individualismo, a primazia da razão instrumental e a restrição de escolhas. Em poucas palavras, o centrar-se em si mesmo, a desconsideração do outro e a perda de liberdade. Não obstante apostar no ideal da autenticidade, o pensador destaca esses problemas (a serem resolvidos exatamente pelo indivíduo que exacerba em suas idiossincrasias). Não há resolução para o paradoxo entre o melhor e o pior dos mundos possíveis. Os extremos são inevitáveis (e até necessários), mais ou menos equidistantes da mediania. A realidade é o que é, independentemente da ação humana, sempre alternante entre bem e mal.

sábado, 25 de junho de 2022

A ARTE DE ESCREVER

Com o fim de introduzir o tema a ser abordado por nós, sugiro-lhes uma digressão para aclarar o significado da frase “a arte de escrever”. O que vem ao nosso pensamento, no instante em que falamos ou ouvimos, escrevemos ou lemos “a arte de escrever”? Que significado damos a essa associação de fonemas ou de signos gráficos? Há duas interpretações em razão da amplitude, ou extensão semântica: na primeira delas entendemos que a escrita possibilita uma arte, como a poesia; na segunda interpretação, que a escrita por si só é uma arte. Stricto sensu e lato sensu, respectivamente. Noutras palavras, sentido específico e sentido amplo. No sentido específico, apenas os gêneros textuais literários são considerados artísticos. Segundo a classificação feita pelo linguista Mikhail Bakhtin, são gêneros textuais as diversas formas consagradas pelo uso da fala/escrita: diálogo cotidiano, notícia, bula de remédio, receita, artigo, biografia, crônica, conto, novela, romance, poema e muitos outros. Dos citados, os que possuem literariedade são o romance, o conto, a novela, a fábula, o poema, a crônica. (A crônica está na linha que separa o literário e o não-literário.) No sentido amplo, tudo o que se produz linguisticamente é arte, inclusive o termo literatura possui a mesma amplitude dada a arte de escrever. Significa o emprego estético da linguagem, na produção dos gêneros literários; e significa mais amplamente toda a produção de obras científicas, filosóficas etc. sobre determinada matéria ou questão. Ao considerarmos a dicotomia proposta pelo filósofo francês Clèment Rosset, de que o mundo é constituído por natureza e artifício, respectivamente, tudo o que existe mesmo sem a presença do homem e tudo o que foi acrescido pelo homem, a escrita é artifício, é arte. A maior das revoluções cognitivas do homo sapiens é demarcada no tempo com o surgimento dos primeiros trabalhos de pintura (que é uma forma de linguagem) e muito possivelmente com o desenvolvimento da língua articulada. Não bastassem esses argumentos, podemos citar a metáfora, que caracteriza a poesia, por excelência, mas ganha em amplitude também. Quando falamos ou escrevemos a palavra “mesa”, fazemos referência a um objeto (de pedra, de madeira, de ferro ou de plástico) que usamos em nossas casas. A palavra “mesa”, no entanto, não é o objeto, mas uma representação dele, uma metáfora originária. Essa digressão é necessária para nos orientarmos no seguinte ponto: a partir da língua posta no mundo, abordaremos a arte como uma de suas possibilidades. Isto é, no âmbito restrito de seu significado. Aristóteles afirma em sua obra epifânica ARTE POÉTICA que a tendência à criação literária é uma manifestação natural, sua essência consiste na imitação (mimesis) e no prazer que daí deriva. Ao contrário de Aristóteles, Platão excluiu os poetas de sua república ideal, na medida em que eles são imitadores de algo que está a três degraus do real, ou em suas palavras, os poetas fazem “simulacros com simulacros”. Para Platão, o mundo sensível (segundo degrau) é uma ilusão, uma representação imperfeita do mundo inteligível, das ideias. Aristóteles detona com essa concepção metafísica da realidade ao dizer que primeiro existem as coisas e depois as ideias das coisas. E disse mais, que nos interessa aqui, que sob as aparências exteriores, a arte descobre a essência interna das coisas. Arte poética, esse pequeno grande livro de Aristóteles, encima a lista de obras indispensáveis para a aquisição de uma cultura erudita da arte de escrever. Outro filósofo que se ocupou com a arte da escrita foi Arthur Schopenhauer. Esse pensador é debochado, pessimista. Seu livro A ARTE DE ESCREVER é pouco técnico e muito crítico, subjetivo, sarcástico, disserta com sua linguagem corrosiva contra tudo e contra todos. Já no primeiro capítulo, Sobre a erudição e os eruditos, detona com professores e alunos. Não o recomendo. O melhor manual sobre a arte que tratamos aqui foi produzido por ANTOINE ALBALAT (jornalista, poeta, ensaísta e crítico literário francês, que viveu entre 1856 e 1935). O título de seu livro é A ARTE DE ESCREVER ENSINADA EM 20 LIÇÕES. Ao contrário de Schopenhauer, Albalat é objetivo, muito técnico, indispensável. O que Albalat nos diz sobre o estilo? “Escrever bem é pensar bem e reproduzir bem, tudo ao mesmo tempo... O estilo é a arte de aprender o valor das palavras e as relações das palavras entre si... O talento não consiste em nos servirmos secamente das palavras, mas em descobrir as imagens, as sensações e os cambiantes que resultam das suas combinações... O ESTILO É, POIS, UMA CRIAÇÃO DE FORMA PELAS IDEIAS E UMA CRIAÇÃO DE IDEIAS PELA FORMA.” Uma observação importante: O manual auxilia, não é fundamental. Ele não transforma ninguém da noite para o dia num escritor, num artista da palavra. Aristóteles diz algo interessante em sua Poética: “Homero pinta o homem melhor do que é”. Não apenas o homem, mas as outras criaturas (reais ou míticas). Pensem na beleza dos deuses gregos! Pensem em Helena, a mulher mais bela da humanidade, que rivalizava com Afrodite (a deusa da beleza), todas elas criação de um poeta. Já falei e escrevi algo como O POETA VÊ O QUE NÃO É PERCEBIDO pelos outros. Não só o vê, mas o expressa com palavras. Coerente com o que diz Aristóteles, o poeta torna a realidade mais visível, ou “porque a vida não basta”, como disse Ferreira Gullar acerca da função da arte. NIETZSCHE é um pouco mais radical: “Temos a arte para não morrer ou enlouquecer perante a verdade”. (AMO O QUE SE ESCREVE COM O PRÓPRIO SANGUE) Para Carlos Drummond de Andrade: “Escritor: não somente uma certa maneira especial de ver as coisas, senão também uma impossibilidade de as ver de qualquer outra maneira”. Outro dito interessante é de Jean-Paul Sartre: “Ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo” Isso que Sartre nos diz equivale ao que Antoine Albalat coloca na Quarta Lição: o ESTILO – o cunho pessoal, a originalidade. Uma frase de Jean Cocteau, que li em minha juventude, não me saiu da cabeça: “ESCREVER É MATAR ALGO INERENTE À PRÓPRIA MORTE”. Não sabia, naquela época, que a escrita viria a ser minha forma mais nobre de salvação. Vocês sabem quem foi WILLIAM FAULKNER? Escritor estadunidense, um dos maiores romancistas do século XX. Esse dado não copiei do sistema de busca do Google, mas da leitura de dez livros de Faulkner: Enquanto agonizo; Uma fábula; Palmeiras selvagens; Luz em agosto; Absalão, Absalão!; Os invencidos; Santuário; Desça, Moisés; Primeiro de maio; e O SOM E A FÚRIA. O som e a fúria coloco entre os dez melhores romances que li em toda minha vida de leitor. Pois bem, Faulkner disse numa entrevista que o escritor se abastece em três fontes imensuráveis: a OBSERVAÇÃO, a EXPERIÊNCIA e a IMAGINAÇÃO. Peço que cada um de vocês, como escritores, olhem para dentro de si e destaquem qual a sua fonte mais generosa e qual a menos generosa. Não tenho problema para dizer que bebo muito na observação e na experiência e pouco na imaginação. A propósito, Faulkner é a prova que justifica o porquê não recomendo A ARTE DE ESCREVER de Schopenhauer. No terceiro capítulo do livro, SOBRE A ESCRITA E O ESTILO, Schopenhauer escreve: “Antes de tudo, há dois tipos de escritores: aqueles que escrevem em função do assunto e os que escrevem por escrever. Os primeiros tiveram pensamentos, ou fizeram experiências, que lhes parecem dignos de ser comunicados; os outros precisam de dinheiro e por isso escrevem, só por dinheiro”. Com a palavra, Faulkner: “Até o sucesso de Santuário eu vinha pintando paredes e fazendo serviços de carpintaria, mas num certo momento senti que poderia ter lucro escrevendo”. PARA FALARMOS DA ARTE DE ESCREVER, é inevitável que falemos primeiro sobre a leitura. JORGE LUIS BORGES, o grande escritor argentino, era humilde para confessar no poema UN LECTOR: “Que otros se jacten de las páginas que han escrito; a mí me enorgullecen las que he leído” Sempre respondo que o mais nobre benefício da leitura é a necessidade de escrever. A leitura também amplia significativamente nosso universo lexical, ensina ortografia, construção de frases, ritmos, imagens, gêneros... e tudo o que é indispensável para atender à necessidade da escrita. Há uns dez anos, dando aula particular, orientei meu aluno a fazer uma redação. No primeiro dia, pedi que ele escrevesse um texto sobre exoplaneta. Poderia ter pedido para escrever sobre a monocultura da soja, mobilidade urbana, outros assuntos mais conhecidos. Sem o auxílio do Google na hora, ele não conseguiu produzir um parágrafo minimamente aceitável. Não escrevemos sobre o que não conhecemos, muito menos se não temos a imaginação como fonte imensurável (como bem entendia Faulkner). Nesse sentido, BUFFON (citado por Albalat) disse: “OS NOSSOS CONHECIMENTOS SÃO OS GERMES DAS NOSSAS PRODUÇÕES” Escolhi três revistas que traziam matéria sobre exoplanetas e emprestei ao meu aluno. Pedi-lhe que lesse as matérias, e produzisse uma redação, com três parágrafos, respectivamente, INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO e CONCLUSÃO. Essas leituras o ajudaram a escrever sobre o tema solicitado. LEITURAS À semelhança de Borges, me orgulho das leituras que fiz, que faço e que farei até quando permitir a saúde dos olhos, da cabeça, dos nervos... Comecei a ler na biblioteca do então Colégio Polivalente, no ano de 1973, portanto, há 49 anos. A longevidade conta não apenas para a quantidade, como para a qualidade da leitura. Hoje leio menos, porque escrevo mais. Minha biblioteca ideal, todavia, continua a incluir livros e livros. A relação desse acervo encontra-se publicada desde 2007. Alguns títulos/autores: FICÇÃO: - A cabana do Pai Thomás, Harriet Stowe; - Admirável mundo novo, Aldous Huxley; - A insustentável leveza do ser, Milan Kundera; - Alice no País das Maravilhas, Lewis Carrol; - A paixão segundo G. H., Clarice Lispector; - Cem anos de solidão, García Márquez; - Dom Quixote, Miguel de Cervantes; - Em busca do tempo perdido, Marcel Proust; - Ficções, J.L. Borges; - Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa; - Madame Bovary, Gustave Flaubert; - Maíra, Darcy Ribeiro; - Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis; - O evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago; - O lobo da estepe, Hermann Hesse; - O mundo de Sofia, Jostein Gaarder; - O processe, F. Kafka; - Orlando, Virgínia Woolf; - Os irmãos Karámazov, F. Dostoievski; - Os rios profundos, José Maria Arguedas; - O tempo e o vento, Erico Veríssimo; - O velho e o mar, E. Hemingway; - Quarup, Antônio Callado; - Robinson Crusué, Daniel Defoe; - Terra sonâmbula, Mia Couto; - Torto arado, Itamar Vieira Junior; - Todos os fogos o fogo, Julio Cortázar; - Ulisses, James Joyce; - Vidas secas, Graciliano Ramos... POESIA: - Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Mario Quintana, Pablo Neruda, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Rainer-Maria Rilke, Baudelaire, Ezra Pound, Dante, Whitman, João Cabral de Melo Neto, Carlos Nejar, Manoel de Barros, Luís de Camões, Vinícius de Moraes, Paulo Leminski... FILOSOFIA, HISTÓRIA, PSICOLOGIA, SOCIOLOGIA, ANTROPOLOGIA, BIOLOGIA, ASTRONOMIA... - A arte da vida, Zygmunt Bauman; - A criação do mundo, George Gamov; - A essência do Cristianismo, Ludwig Feuerbach; - A morte da fé, Sam Harris; - A mutação interior, J. Krishnamurti; - A necessidade da arte, Ernst Fischer; - A origem das espécies, Charles Darwin; - A realidade não é o que parece, Carlo Rovelli; - A rebelião das massas, José Ortega y Gasset; - Armas, germes e aço, Jared Diamond; - As eras de Gaia, James Lovelock; - Assim falou Zaratustra, F. Nietzsche; - Conferências e escritos filosóficos, M. Heidegger; - Cosmos, Carl Sagan; - Dicionário filosófico, Voltaire; - Édipo: mito e complexo, Patrick Mullahy; - Ensaios, M. Montaigne; - O futuro de uma ilusão e O mal-estar na cultura, S. Freud; - O gene egoísta, Richard Dawkins; - O homem-deus, Luc Ferry; - O macaco nu, Desmond Morris; - O novo iluminismo, Steven Pinker - O ópio dos intelectuais, Raymond Aron; - Os sumérios, S.N. Kramer; - Por que não sou cristão, Bertrand Russel; - Psicanálise da sociedade contemporânea, Erich Fromm; - Quebrando o encanto, Daniel Dennett; - Sapiens: uma breve história da humanidade, Yuval Noah Harari; - Uma breve história do tempo, Stephen Hawking... Na relação acima, mais importante que o título é o nome do autor. Ao citar, por exemplo, ASSIM FALOU ZARATUSTRA, cito Nietzsche. Todos os seus livros são relevantes. Não apenas os seus livros, mas também os que foram escritos por outros autores sobre os livros de Nietzsche, sobre a filosofia nietzschiana. ESCRITOS Iniciei minha carreira de leitor em 1973 e de escritor (resultados das múltiplas leituras) no fim dos anos oitenta. A publicação do primeiro livro, todavia, só aconteceu em 2006. Dezessete anos de leitura, dezessete anos a escrever até Ponteiros de palavras. Depois vieram Vozes e vertentes (2010), O fogo das palavras (2011), Margens impossíveis (2013), Palavras de fogo (2014), Considerações neoateístas (2016) e Claro&profundo (2019). Tudo o que escrevi e publiquei até o presente considero meros ensaios poéticos e filosóficos para produções futuras. Na abordagem do tema em pauta, a arte de escrever, é mais relevante falar-lhes do COMO escrevo. Não O QUÊ ou O PORQUÊ (já mencionado anteriormente). COMO? Eis a questão... Respondo com uma frase de MÁRIO QUINTANA, que ele intitula DA DIFÍCIL FACILIDADE: “É PRECISO ESCREVER UM POEMA VÁRIAS VEZES PARA QUE DÊ A IMPRESSÃO DE QUE FOI ESCRITO PELA PRIMEIRA VEZ” Não paro de reescrever meus poemas e meus microensaios e aforismos. Ultimamente, preparo um livro de haicai, forma fixa de poema com três versos. Atravesso a madrugada para escrever um único haicai. Ao sacrificar o sono, que vem e se vai, escrevo com o próprio sangue, como era digno de amor a Zaratustra. MUITO OBRIGADO!

quarta-feira, 23 de março de 2022

O VENDEDOR DE LIVROS (CRÔNICA DE CURITIBA)

 

   O homem vende livros na Feira do Largo da Ordem, que acontece todos os domingos em Curitiba. Seu espaço fica a poucos metros do bebedouro (onde os tropeiros davam água aos cavalos e mulas desde meados do século XVIII).

           Diferentemente de outros feirantes, o livreiro não dispõe de uma barraca armada: vende ao sol. Mesmo assim, ele é bem-humorado, a divertir seus clientes com algumas tiradas.

           Todas as vezes que vou à feira, dedico um tempo maior a conversar com o homem.

Dois chistes de sua chancela transcrevo abaixo:

           A mulher dá uma olhada para tantos volumes e pergunta como eles estão organizados nas caixas de madeira. A resposta é categórica: “Os livros estão organizados de uma forma rigorosamente aleatória”.

           Domingo último, ao passear pelo Largo da Ordem, mais uma vez me detive em frente ao amigo vendedor de livros. A chuva era iminente, por isso me preocupei com o acervo exposto. Com um sorriso de tranquilidade, o homem apontou para uma lona enrolada:

           “Tenho aqui o preservativo cultural.”

           Infelizmente, a garoa caiu mais grossa, e o homem teve que desenrolar o “preservativo cultural” e estendê-lo sobre os livros arrumados de uma forma “rigorosamente aleatória”.

domingo, 6 de março de 2022

NÃO EMPODERAMENTO

 

        Em 2020, escrevi o artigo Rede social Facebook: o não empoderamento do sujeito do enunciado, como avaliação no curso de Filosofia (FAE Centro Universitário, Curitiba). No momento em que a mídia social possibilita a um grande número de usuários criar uma página e se inserir no que pode ser considerado letramento digital, ousei questionar diversos estudos acadêmicos que apontam certo empoderamento pessoal.

       Para tanto, desenvolvi meu argumento baseado em três referências: Mikhail Bakhtin, Platão e Sigmund Freud. Da análise do gênero discursivo recorrente, do conteúdo opinativo e narcisista da enunciação, sustentei que o sujeito que a elabora não se efetiva como interlocutor dialógico, não contribui para a verdade e tampouco cumpre um papel de relevância intersubjetiva. Ademais, há de se considerar o poder de manipulação do Facebook, recentemente denunciado por ex-colaboradores da startap.

       A partir de Bakhtin, esclareci o que seja o enunciado dentro do processo comunicativo. O sujeito é quem fala ou escreve para um ouvinte ou leitor que dialoga com ele. Esse segundo componente da relação dialogal, por sua vez, ocupa “uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda” do primeiro, com o qual alterna o papel de enunciador. O enunciado é tudo o que produzido durante a comunicação oral ou escrita. O linguista e filósofo russo classificou os gêneros discursivos de primários (conversa, bilhete, e-mail etc.) e secundários (crônica, conto, artigo etc.).

       Da réplica do diálogo cotidiano ao comentário mais longo em que se expressam ideias, apreciações e juízos de valor, a opinião constitui a maioria dos enunciados no Facebook. Na linha segmentada proposta por Platão, a opinião consiste numa forma primária de conhecimento, fundamentado em ilusões, crenças e preconceitos. Nesse aspecto o filósofo rende tributo a Parmênides, pré-socrático que opunha a opinião à verdade.

       Em vista de sua subjetividade, de seu caráter íntimo, a opinião visa a dar evidência ao sujeito que a enuncia. A imagem de si mesmo, na percepção desse sujeito, merece o compartilhamento com o outro, independentemente da concessão dialogal. Pari passu com outras semioses (a exemplo do selfie), a enunciação é motivada pelo narcisismo, ou a necessidade de investimento no Eu, segundo Freud. No âmbito hi-tech, o Facebook representa o lago que reflete a própria face piegas do sujeito enunciador. Antes de comunicar algo, de exercer uma função social, todo enunciado, acompanhado de imagem ou não, presta-se à afirmação de uma identidade narcísica.

       Em síntese, não há empoderamento no emprego de gêneros primários (como a conversa cotidiana), não há na opinião e na expressão narcisista. Para se tornar empoderado, o usuário deve produzir uma forma de gênero digital que influencie seu interlocutor, que se aprofunde na busca da verdade e que se caracterize pela alteridade. Não há empoderamento sem considerar a relação com o outro.

quinta-feira, 3 de março de 2022

DRAMA PESSOAL

 

        Hoje levantei com a ideia de pintar meu autorretrato com vitiligo. Pictoricamente, estas manchas mais claras na testa, acima da sobrancelha e no extremo direito da boca darão ao quadro um aspecto interessante.

       Outra ideia me ocorreu nesta manhã: iniciar a escrita de um romance. Depois que li Terra sonâmbula (Mia Couto) e Torto arado (Itamar Vieira Júnior), essa ideia se renova com frequência (sempre vencida pela autocrítica).

       Qual é a autocrítica?

       Por um lado, reconheço que não estou preparado para tão grande empreendimento criativo, que me exigiria muito suor, muita queima de neurônio. Por outro, penso que o compromisso com a realidade é mais urgente. O mundo não anda bem, a necessitar do meu engajamento filosófico.

       Platão poderia estar certo em deixar os poetas fora de sua república, porque eles perpetuam a ilusão, o estado sensível do fundo da caverna. Para sair à luz, o homem o faz por intermédio da razão, do conhecimento.

       Assim dividido, adianto que não pintarei meu autorretrato, tampouco iniciarei um romance. A arte fica para depois, não obstante a perspectiva de que depois será tarde.  

        

terça-feira, 1 de março de 2022

"GIGANTES DE RAZÃO CIENTÍFICA"

                      Muito antes de ler Charles Taylor, filósofo canadense, eu já chegara aos três grandes nomes da modernidade, que libertaram o homem ocidental do delírio religioso: Copérnico, Darwin e Freud. Tal libertação, ainda incompleta, não ocorre sem grandes frustrações.

         O primeiro nome é Nicolau Copérnico, monge polonês, que descobriu matematicamente que era a Terra que girava em torno do Sol, e não o contrário (como sustentava todo o saber anterior). Sua descoberta gerou um grande mal-estar em pleno apogeu do Cristianismo, quando a Terra estava no centro do mundo, com o Deus sobre ela, sentado num “sólio de nuvens” (no dizer de Will Durant). Com estudos posteriores, nosso planeta foi perdendo cada vez a centralidade, reduzindo-se a um grão de poeira na imensidão do espaço-tempo. Copérnico receoso de que seu estudo causaria uma indignação muito grande, com consequências terríveis para ele, publicou-o um pouco antes de morrer em 1543. Giordano Bruno, que defendeu mais tarde o heliocentrismo, foi condenado e executado pela santa igreja de Roma.

         O segundo nome e (reputo) o mais importante é Charles Darwin. Outro que tardou para publicar seu A origem das espécies (1959), um escândalo para a Era Vitoriana, de fundamentalismo moral e religioso. A frustração causada por Copérnico foi superada com a crença de que o homem era ainda uma criatura divina, diferente dos outros animais. Darwin explica minuciosamente como ocorreu a evolução das espécies, como homem e chimpanzé pertenciam a uma mesma espécie entre seis e sete milhões de anos antes do presente. O criacionismo, tido como verdade absoluta, passa a ser relegado pela ciência como um outro mito qualquer.

         Sigmund Freud é o terceiro nome citado por Taylor como um dos “gigantes da razão científica”. Com a frustração propiciada pelo darwinismo, abandonou-se a crença no mito adâmico e se agarrou à racionalidade, uma centelha de luz a distinguir o homem. Todavia, surge Freud, que citara Copérnico e Darwin no ensaio Uma dificuldade da psicanálise como responsáveis por causar grandes aborrecimentos à humanidade, com a sua descoberta do inconsciente. O terceiro aborrecimento (frustração da razão que se pressupunha a essência humana). O consciente é a ponta emersa do iceberg, tudo mais é instinto, pulsão, inconsciente.

          A reação criacionista foi violenta no começo da modernidade, com a inquisição, negacionista ao longo dos últimos séculos e adaptável nos dias atuais. Como adaptável? No discurso do Papa Francisco, por exemplo, ao afirmar que o big bang é perfeitamente compatível com a criação divina do mundo. A adaptação é o último esperneio do mito, que se mantém vivo pela fé depositada nele.     

A SALVAÇÃO PELO AMOR

 

    Luc Ferry é um filósofo francês contemporâneo, autor de livros extraordinários, como O que é uma vida bem-sucedida, Aprender a viver, A nova ordem ecológica, A revolução do amor, O homem-Deus, A mais bela história da filosofia, entre outros. Malgrado os títulos acima, nada de autoajuda do tipo senso comum.

         Hoje destaco as cinco grandes respostas filosóficas para uma vida boa, que Ferry disserta em seu A mais bela história da filosofia. Essas cinco respostas foram dadas pela filosofia ao longo de sua trajetória no Ocidente, nos últimos três milênios.

         A primeira resposta surge na Antiguidade, “como pano de fundo dos relatos mitológicos”, retomada mais tarde pelos filósofos clássicos gregos. A ideia central dessa resposta se depreende da concepção de que o mundo expressa uma ordem harmoniosa, o cosmos. “Uma vida boa”, escreve Ferry, “consiste em adequar-se à ordem do mundo”. Ainda hoje, movimentos holísticos voltam a ensinar uma prática que harmonize mente-corpo com a ordem do Universo.

         A segunda resposta, na verdade, é apresentada pela religião cristã, que substituiu a filosofia em franca decadência. Se a filosofia grega remetia a “uma imortalidade muito parcial”, em que o indivíduo se dissolvia na ordem cósmica, o cristianismo propõe a ideia de salvação pessoal, de ressurreição do indivíduo para uma vida eterna e paradisíaca. 

         A terceira resposta é dada a partir do Renascimento, com sua virada homocêntrica. Ela não mais se fundamenta no cosmos ou na divindade supraterrena, mas na razão. Segundo Ferry, com o humanismo a filosofia permite o surgimento de dois traços que passam a caracterizar a vida boa: a valorização do conhecimento, a cultura, a civilidade; e a justificação da vida por um exemplo, por uma contribuição à História, por uma obra, por algo que permaneça na lembrança dos pósteros.

         A quarta resposta resulta de um fracasso da razão iluminista em dar um sentido à vida. Ela é instaurada pelos filósofos da desconstrução, que passaram a considerar “as dimensões da existência até então esquecidas, sufocadas ou reprimidas, como o inconsciente ou a animalidade”. Entre esses pensadores, despontam Nietzsche, Heidegger e Derrida. Para o filósofo do martelo, “todo ideal nega a vida”, de Platão à modernidade, constitui o que ele denominou de niilismo. Sua proposta expressa no pensamento do eterno retorno é de afirmação da vida.

         A quinta resposta vem depois das “conquistas da desconstrução” dos valores tradicionais (religiosos, morais, patrióticos), época que Ferry designa como “humanismo do amor”.   O amor possibilita uma experiência que dá um sentido à vida, com maior alcance ao sair de nós mesmos. Amar e ser amado não é metafísica, sentimento vivenciado na terra, e não no céu.

         Ferry se declara um não nietzschiano, todavia, aproxima-se do pensamento do eterno retorno, que propõe a afirmação da vida, o amor fati como salvação na imanência. Como filósofo da desconstrução, por excelência, Nietzsche via no niilismo uma catástrofe para nossa civilização, difícil de ser superada. Ferry é bem otimista em relação à superação – pelo amor.

 

REFERÊNCIA

FERRY, Luc. A mais bela história da filosofia; tradução de Clóvis Marques. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018. 

JAMES WEBB - O NOVO TELESCÓPIO

 

O telescópio espacial James Webb foi lançado no dia 25 de dezembro de 2021, para substituir Hubble, seu congênere anterior. A nova tecnologia foi desenvolvida pela NASA, Agência Espacial Europeia e Agência Espacial Canadense. Os objetivos principais de JW são captar a radiação infravermelha resultante do Universo muito jovem e observar a formação de galáxias e estrelas.

Para entender o primeiro objetivo é necessário aludir a Arno Penzias e Robert Wilson. Em 1965, esses dois cientistas descobriram uma radiação cósmica de fundo em micro-ondas, emitida pelo Universo em expansão acelerada logo após o Big Bang. Noutras palavras, essa radiação é resíduo ainda existente (e captável) da “grande explosão”, geradora de muita luz e calor. Por essa descoberta, Penzias e Wilson foram laureados com o Nobel de Física em 1978.

Para entender o segundo objetivo, a observação de estrelas e galáxias bebês, é necessário conhecimento prévio da relação entre espaço e tempo: quanto mais distante no espaço (o novo telescópio consegue alcançar), mais distante no tempo. A luz apresenta uma velocidade de 300.000 km/s. O Sol que observamos neste exato instante é o Sol de 8 minutos atrás. Sírius, a estrela mais brilhante do céu noturno (a olho nu), há 8,57 anos não se encontra mais lá onde é observada. O JW será capaz de fotografar estrelas e galáxias a bilhões de anos-luz, quando esses corpos celestes emergiam do caos primordial.

A Via Láctea, a galáxia em que habitamos, tem um diâmetro de 100.000 luz. O Sistema Solar se localiza a 27.000 anos-luz do centro galáctico, na borda de um dos braços espiralados (a faixa de estrelas que atravessa o céu em noites limpas). O Universo tem bilhões de galáxias, maiores e menores que a Via Láctea. O telescópio James Webb buscará as galáxias mais distantes (no espaço e no tempo).

"IMAGINAÇÃO DO DESASTRE"

 

                    O futuro chega a passos largos.

                  O que isso quer dizer? Noutras palavras, para que o mais ignorante entenda com uma clareza meridiana.

                  Presentemente, imagina-se um tempo em que as pessoas com dinheiro na mão não comprarão alimento nos supermercados, em razão de inexistir o alimento. Também aumentará o número de famélicos, que não terá dinheiro para comprar o alimento disponível.

                  Esse quadro não é exagero, embora se possa atribui-lo em parte à “imaginação do desastre” (expressão cunhada por Henry James há mais de um século).

                  Uma seca neste verão bastou para faltar verdura no comércio. Somente aqueles que se levantam cedo conseguem comprar esse alimento indispensável. Mudanças climáticas contundentes, provocadas por causas naturais ou humana, poderão trazer carestias mais prolongadas.

                   Não bastasse o fator climático desfavorável, temos o aumento populacional, cuja previsão crava 9,5 bilhões de indivíduos para 2050.

                   A frase acima (para concluir) faz muito sentido, a despeito de toda a esperança depositada na tecnologia em constante evolução.

                   Por favor, pensem nisso!

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

FRUIÇÃO E CONHECIMENTO

 

            A leitura propicia, a um tempo, fruição e conhecimento. Mesmo os gêneros literários – romance, conto, crônica, poema – desencadeiam um processo cognitivo. Mesmo os gêneros filosóficos e científicos – ensaio, artigo, monografia, tese – despertam o prazer de grandes descobertas.

        A longa experiência como leitor eclético me descortina um mundo que amalgama saberes e emoções. Nesse sentido, compreendo que o conhecimento já se transformou numa paixão, como escreve Nietzsche no livro Aurora, aforismo 427.

        Nesta tarde, lia O suicídio do Ocidente, de James Burnham, quando me deparei com o seguinte: “Considero óbvia demais a discussão de que, se os Estados Unidos entrarem em colapso ou se tornarem insignificantes, o colapso de outras nações ocidentais não tardará muito”.

        Inobstante a obviedade considerada pelo autor, não me recordo de ter lido algo nessas palavras até então, conquanto defendo a ideia há bastante tempo. O colapso estadunidense, acrescento, colocaria em risco uma das maiores conquistas da civilização ocidental, a liberdade.

        Ao ler a passagem acima transcrita, senti certo contentamento por encontrar uma referência – a posteriori – à minha análise de um assunto tão relevante.   

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

A GLÓRIA OU A MORTE

Uma tempestade matou cinco alpinistas no monte Elbrus, no Cáucaso russo, nesta sexta-feira.

       Gostaria de estar na companhia de amigos, para pensarmos juntos o paradoxo existencial referido de uma forma transversal pela notícia acima.

       Sozinho neste apartamento, começo a análise de uma forma dialética, hegeliana.

       Qual seria a tese?

   O homem desafia a natureza, para satisfazer seu espírito aventureiro, a praticar esportes de alto risco de vida. Ao lado do alpinismo, há o paraquedismo, o wing walking (equilibrar-se sobre as asas de um avião), o esqui off-trail (descer montanhas no esqui), rafting (descida em corredeiras dentro de botes), montaria de touro, entre outros.

       Qual seria a antítese?

       A morte, simplesmente.

       Para não me afastar do mote inicial, o alpinismo, mais de 300 pessoas já morreram a escalar o Everest, o pico mais alto do planeta. Altura, frio, vento, falta de oxigênio e exaustão física são algumas das causas que se opõem ao objetivo da aventura.

       O homem deixará de se aventurar, mesmo consciente de que corre risco de vida? Sua vida deixa de ter sentido sem a prática desses esportes chamados radicais? A liberdade para fazer escolhas perigosas constitui um bem?

       Qual seria a síntese? 

CANANÉIA

    Cananéia é o município mais meridional do estado de São Paulo, cuja sede dista 265 km da capital paulista. A vila de Maratayama (hoje Cananéia) fora visitada por Martim Afonso de Sousa em 1531, antes da fundação de São Vicente em 1532, oficialmente a povoação mais antiga do Brasil. Na falta de documentação comprobatória da precedência efetiva, Cananéia ficou sem essa honraria histórica.

        No centro velho de Cananéia, as casas ainda conservam o estilo arquitetônico do período colonial. As ruas são muito estreitas, dando passagem a apenas um automóvel. A avenida Beira Mar é a mais movimentada, com restaurantes, bares, pizzarias e vendedores informais, que atendem os turistas de final de semana. Rampas e escadarias dão acesso ao cais de onde zarpa a balsa para Ilha Comprida.

        O melhor passeio é andar de barco ou voadeira pela Baía dos Golfinhos até a Ilha do Cardoso. Por incrível que pareça, na Baía dos Golfinhos há golfinhos realmente. Eles fazem piruetas a dez metros da embarcação, em dupla ou trio, facilmente captáveis pelo clique fotográfico. A Ilha do Cardoso é uma reserva natural, com um núcleo de estudos ecológicos.

        A região produz uma árvore popularmente chamada de cataia, cuja folha entra na composição de uma bebida alcoólica muito apreciada, a cachaça de cataia. Quem vier à Cananéia precisa provar dessa cachaça, enquanto espera por um camarão, robalo, betara, siri, entre outros pescados. A gastronomia é um dos itens indispensáveis na agenda do turista, bem como o conhecimento do lugar (atestado por esta crônica).    

A BÍBLIA E OS CRISTÃOS

 

“A maioria das pessoas deste mundo

acredita que o Criador do universo

escreveu um livro”

Sam Harris

 

            A Bíblia é a palavra revelada – afirma a doutrina e acredita piamente todos os cristãos. O pressuposto é que houve um texto original ditado por Deus. A propósito, essa autoria transcendente caracteriza outros escritos religiosos e afins: Corão, Livro dos Mórmons, Livro dos Espíritos, entre outros.

            A crença é de que as diversas traduções dos textos originais, sua reescritura, acréscimos e cortes não comprometem a autenticidade da Bíblia. Destarte, existem atualmente pelo menos três versões diferentes: a Bíblia católica, a Bíblia evangélica e a Bíblia ortodoxa. As divergências de forma e conteúdo, todavia, são insuficientes para abalar o dogmatismo cristão.

            Ao longo dos primeiros séculos da Igreja Católica, as chamadas guerras santas foram sangrentas, com perseguições e execuções fratricidas, tudo pela injunção de um texto único, com uma interpretação convergente. Jesus é mais humano? Mais divino? Humano e divino ao mesmo tempo? Há outras possibilidades, como a compreendida pelos judeus, de que Jesus não era o Messias, ou a de alguns estudiosos sérios, que asseguram a não existência histórica de Jesus.

            A discussão não tem fim, malgrado a inadmissibilidade para o mundo cristão e a irrelevância para outros mundos.

            Ainda sobre a Bíblia, a edição evangélica, por exemplo, soma 66 livros, 1.189 capítulos e 31.103 versículos. Esses números são diferentes das demais bíblias. Se a versão primeira foi ditada por Deus, quem autorizou a supressão de 12 livros em relação à bíblia ortodoxa (mais antiga, mais próxima da origem)? Os textos suprimidos não se configuram uma afronta ao seu autor (que era bastante irado no princípio)?

            Por que os pregadores escolhem certos versículos e evitam outros? Por um lado, a fé é superestimada num contexto imaginário de adoração extrema. Por outro, nenhuma referência à obra coerente com os preceitos bíblicos.

            No dia a dia, fora do templo, a vida de muitos cristãos é de uma indisfarçável hipocrisia. Basta apenas o versículo 24, capítulo sexto de Mateus, para escancarar a contradição: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque, ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas”.

            Obviamente, esse versículo nunca é citado pelos astutos propaladores da palavra. Ele nega frontalmente a doutrina da prosperidade, nega a conduta real da maioria cristã, ávida por dinheiro.

SUPERPOPULAÇÃO

 

         Os otimistas não se impressionam com a superpopulação, não a anteveem como um problema sério. Diferentemente, desde os anos oitenta, preocupo-me com o crescimento demográfico.

         Bem ou mal, todo o artifício tecnológico, potencializado de uma forma crescente, tem atendido à demanda de alimentação. Obviamente, isso ocorre às expensas da sustentabilidade, ou da preservação do meio ambiente.

         Os recursos naturais, independentemente dos processos para explorá-los, exaurem-se a olhos vistos. As alterações climáticas são cada vez mais agressivas para o cultivo do solo. Essa prática preexistia aos sumérios, povo que desapareceu em decorrência de problemas locais, semelhantes aos que já podem ser observados em âmbito global.

         Como alimentar 9,7 bilhões de bocas? Se tudo correr bem, o que é quase improvável, o número de subalimentados e famintos crescerá muito, a duplicar ou triplicar os 811 milhões atuais.

A fome será apenas uma das consequências inevitáveis da superpopulação. Outras serão factíveis, mais ou menos graves. Não as nomeio aqui em respeito ao bem-estar do leitor mais sensível.

           

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

TIPO BRASILEIRO

        Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada portuguesa que chegou a este continente em 1500, escreveu ao rei D. Manuel I:

A terra em si é de muito bons ares... Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. [...] Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.

         Por que cito Caminha?

         Não é para trazer à baila a questão dos nativos, que deviam ser salvos pela doutrina cristã. A primeira coisa que diria a esse respeito é de que houve uma perdição imposta pela cultura eurocêntrica.

         A citação acima serve de mote para analisar meu patriotismo, o qual se encontra sub judice, nas mãos de um juiz extremamente (auto)crítico – a própria razão.

         No ano 2000, participei de um concurso nacional entre os universitários, que consistia em escrever uma carta aos portugueses, a tematizar tudo o que o Brasil tinha de melhor no presente.

         Sobre o território brasileiro, descrevi sua multifacetada natureza geográfica com a minúcia que faltou ao missivista apenas desembarcado de além-mar. Duas décadas mais tarde, não mudaria uma vírgula da descrição.

         O problema está em sua gente. Os índios não foram salvos ao longo da colonização e da nação independente. Hoje descrevo o povo como um motivo para repensar meu patriotismo. Mais que representá-lo no poder, os políticos constituem uma amostra do tipo brasileiro – para o qual não há salvação.

         Mario Quintana foi preciso: “Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?”. 

segunda-feira, 26 de julho de 2021

FILOSOFIA, PARA QUÊ?

          O senso comum pergunta com frequência, a denunciar a própria ignorância, qual a finalidade da filosofia. Toda resposta me parece perda de tempo, ainda que filósofos o fizessem desde Pitágoras. Por que “perda de tempo”? Cito apenas dois motivos: ou as pessoas que perguntam têm memória fraca, ou falta-lhes o interesse efetivo.

            Não bastasse as funções atribuídas à filosofia até o presente, funções exigidas na própria definição do termo, desenvolvi o argumento seguinte: o conhecimento de seres, coisas e fenômenos evoluiu para áreas cada vez mais isoladas umas das outras. Ciências muito próximas em suas origens, hoje não apresentam uma relação evidente entre si. Cabe à filosofia a tarefa de relacionar conhecimentos estanques, a partir de um mapa conceitual centralizado na vida.

            A despeito de se assemelhar ao paradigma da complexidade de Edgar Morin, a ideia acima me ocorreu antes de ler esse pensador francês. Coerente com esse pensamento, debruço-me sobre os livros de biologia evolutiva, física teórica, astronomia, psicologia, história, linguística, sociologia, arte (literatura) e filosofia desde os anos oitenta. Os livros fundamentam o discurso teórica; a realidade, constituída por seres, coisas e fenômenos, fundamenta a pesquisa de campo.

            Clément Rosset escreve em Lógica do pior (1989): “Se há uma tarefa específica da filosofia – e isso independentemente de seus interesses fundamentais, que, mais uma vez, são inteiramente outros –, esta seria a de curar o homem de sua loucura”. Em minha percepção, o homem necessita libertar-se da ignorância. 

quinta-feira, 15 de julho de 2021

TUDO PERMITIDO

        A noção moral de certo e errado precede o religioso, caso contrário o homem não teria sobrevivido longos milênios antes de pensar a existência da alma transcendente, de Deus e de todos os mitos que constituem as religiões. A organização social em família, clã, tribo e comunidades maiores é uma característica do homo biologicus.

         Alguns pensadores da ética, teístas inconfessáveis, recorrem à frase de Dostoiévski, de que sem Deus tudo seria permitido. Tenho minhas dúvidas se os citadores de Dostoiévski leram seu Os irmãos Karámazov. A citação é descontextualizada, tomada como uma afirmação. Na verdade, é uma pergunta. Mítia narra a Aliocha o diálogo que teve com Ivan (os três irmãos Karamázov): “Ivan não tem Deus... Eu lhe perguntei: ‘Então, nessas condições, tudo é permitido?’” (p. 682).

         A despeito de Dostoiévski ser um cristão ortodoxo, não afirma que sem Deus tudo seria permitido. O “sim” da resposta é um dos pressupostos. Há o “não”. Não li até o presente que se tudo é permitido, também o é a moralidade sem Deus. Dizer que haveria um retorno à horda se a não existência de Deus viesse a ser confirmada já reflete o espírito cristão, propenso a depreciar o homem natural.

         A secularização é um processo civilizacional que já aprova que o tudo permitido sem Deus pode ser benéfico à humanidade. 

quinta-feira, 24 de junho de 2021

A ALMA DA IMPACIÊNCIA

 

            O título acima é um dos tópicos do capítulo A lenda do humano imaterial, do livro Homo biologicus, de Pier Vincenzo Piazza (2021). O livro é atraente desde a primeira página, talvez porque remete o leitor ao paradigma da biologia, que passou a dominar o mundo científico.

            Piazza encanta por sua ironia cavalheiresca, algo muito raro nestes dias em que prevalece a grossura deslavada ou a sensibilidade excessiva. Eis a prova disso:

 

O ato de fé [...] é a arma inelutável da metafísica religiosa que divide os homens em duas categorias com capacidades diferentes. Um primeiro tipo de Homo sapiens possui um sexto sentido que lhe possibilita ver e sentir coisas imateriais completamente inacessíveis ao segundo tipo de ser humano, que só tem os cinco sentidos clássicos. O problema é que esse sexto sentido tem a especificidade de não ser comunicável aos que não o possuem (pp. 28-29).

 

            O que os humanos de seis sentidos veem (sentem e pensam) não é demonstrável aos de cinco sentidos, tampouco o é refutável por meio da ciência. Por outro lado, os humanos de cinco sentidos não conseguem demonstrar que o sexto sentido não existe. O paradoxo assim se constitui em síntese.

            Ante a dificuldade de se chegar a um acordo, Piazza propõe uma outra formulação do problema.

 

Tenho cinco sentidos, meu amigo diz que tem seis. Se seu sexto sentido não existe, por que ele está convencido, com toda boa-fé, de que o tem? A única explicação é que precisa dele. Por quê? Simplesmente para explicar certo número de coisas que não são possíveis de compreender de outra maneira. Visto assim, o homem de seis sentidos poderia apenas ser alguém que sente medo ou ansiedade diante da ignorância. Consequentemente, quando não conhece, ele inventa (p. 29).

 

            A diferença entre humanos de cinco e de seis sentidos pode significar que uns são pacientes e outros, apressados. Esta é a grande sacada do autor, que é médico psiquiatra, com estudo inovador sobre as bases neurofisiológicas da toxicodependência e da psicopatologia.

            Os apressados respondem suas dúvidas com a imaginação. Os pacientes, ao contrário, admitem a própria ignorância e vivem com as incertezas (que acabam ser respondidas um dia por conhecimentos comprovados).

         Piazza esclarece que sua intenção não é negar a fé ou Deus, mas buscar uma resposta para a origem da “lenda da alma”. Seu livro atende os pacientes, que esperam o esclarecimento de suas dúvidas; bem como os apressados, que podem retificar o que viram (sentiram e pensaram) cedo demais.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

PANDEMIA: UMA REFLEXÃO

         A COVID ainda causará muito sofrimento no mundo, pela perda de pessoas vitimadas por ela. A existência daqueles que se defrontam com a morte de um parente não é mais a mesma doravante. Certamente, essa constitui a mais dolorosa consequência da pandemia.

          Outras constatações, que são leitura dos fatos, evidenciam-se cada vez mais, à medida que passam os dias. No indivíduo, o âmbito mais restrito, pode-se constatar o medo e a ansiedade. Ainda não é possível saber para que lado ele seguirá, ou para o isolamento em si mesmo, egocêntrico, ou para a alteridade, para uma abertura intersubjetiva.

         No âmbito mais abrangente, o das nações politicamente organizadas, ao mesmo tempo, observa-se o fechamento de fronteiras, por um lado, e a ajuda internacional, por outro. A regra tem sido o isolacionismo, com o fito de evitar o inevitável. A exceção é representada pelos Estados Unidos, com a distribuição gratuita de vacina.

         A pandemia coloca à prova a capacidade do indivíduo de se autocontrolar psicologicamente, sem negar o valor incomensurável da vida. Da mesma forma, testa a globalização, uma superestrutura idealizada por todos, mas que se instabiliza ante os interesses políticos e econômicos de estados nacionais.

           A consequência derivada da dor consiste no aprendizado que todos adquirimos verdadeiramente: a ciência como um bem humano, capaz de mitigar nossos sofrimentos e, principalmente, libertar-nos da ignorância.